Novo filme de Helvécio Ratton revela a forte ligação entre os queijos de leite cru e a cultura mineira. Apesar de cotidiana e já conhecida em todo país, essa relação guarda sutilezas que serão mostradas no documentário “O Mineiro e o Queijo”, com previsão de lançamento para o segundo semestre. O filme terá duração de 70 minutos e contou com o apoio da SerTãoBras. Tal iniciativa amplia o debate sobre a situação dos queijos artesanais no país e as dificuldades enfrentadas por seus produtores. A matéria de Cesar Felício fala do documentário, mas também desse patrimônio nacional ainda impedido de circular fora do Estado de Minas Gerais. Foi publicada no jornal Valor Econômico, na sexta-feira 1 de abril de 2011.
Confidência mineira
por Cesar Felício, no Valor Econômico


Filme de Helvécio Ratton revela um segredo: como é a produção do verdadeiro queijo de Minas, que, por lei, só pode ser vendido no Estado
Em Minas, a expressão “queijo minas” tem um significado completamente diferente do conhecido em São Paulo ou no Rio. Para dentro do Estado que concentra cerca de 10% da população brasileira, o queijo típico nada tem a ver com o chamado “Minas padrão” ou a massa branca e aguada também chamada de queijo frescal. O verdadeiro queijo de minas é uma peça de um quilo e meio, absolutamente circular e mais achatada que a apresentação dos queijos europeus. Uma crosta amarela formada pela cura exige um certo esforço para ser rompida e se ter acesso a um interior branco, cremoso, de sabor pronunciado e teor de sal maior que o dos queijos industriais.
É feito com leite cru, não pasteurizado, uma chave que o caracteriza como artesanal e o lança na virtual clandestinidade.
Ao menos pelo vídeo ou pelo cinema, os 90% de brasileiros que moram fora de Minas poderão conhecer um dos segredos compulsoriamente bem guardados pelo Estado: o queijo mineiro artesanal, produzido na serra da Canastra, na região do Serro, próxima ao Vale do Jequitinhonha e no Alto Paranaíba, área na divisa entre Minas e Goiás. A relação entre esse produto – encontrado com facilidade nas grandes cidades mineiras, mas proibido de ser vendido no varejo do resto do País – e a cultura mineira é visceral e será mostrada no documentário “O Mineiro e o Queijo”, de Helvécio Ratton, com duração de 70 minutos, que será lançado no segundo semestre pela Quimera Filmes.
“O queijo surgiu em Minas durante o ciclo de mineração, como uma forma de preservar um alimento que podia ser transportado para regiões de pequena produção agrícola e armazenado por longos períodos”, comenta o cineasta, autor, entre outros filmes, de “Batismo de Sangue” e “Menino Maluquinho”. Da produção do queijo surgiram derivados que se tornaram ícones no Estado, como o pão de queijo, feito com as raspas do produto.
A maneira de produzi-lo essencialmente é a mesma desde o século XVIII: a primeira etapa é a coagulação do leite. Posteriormente se faz a prensagem; depois, a salga; em seguida, a maturação. Por último, vem a rala, para retirar o excesso de sal. A fase decisiva é a da coagulação do produto, em que são acrescentados o coalho e o “pingo”. São estes dois insumos que dão o sabor e a consistência características do queijo. No período colonial, o coalho era derivado de uma enzima do estômago do boi. Hoje todos os produtores usam o coalho industrializado. O “pingo” só existe na produção artesanal: é o resíduo da prensagem do queijo finalizado no dia anterior, guardado durante a noite.
O queijo artesanal é produzido em todo o Estado, mas o governo de Minas atualmente cadastra e fiscaliza os produtores de cinco regiões: Serra da Canastra, Serro, Alto Paranaíba, Campo das Vertentes, que é a região de Tiradentes, São João Del Rey e Araxá, cidade próxima à divisa com São Paulo, com produção mensal de 170 toneladas. Uma lei estadual permitirá agora o cadastramento em todo o Estado, o que pode ampliar exponencialmente a produção reconhecida: “Os cálculos preliminares indicam a existência de 6 mil produtores familiares”, disse o gerente de educação sanitária do Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA), Pedro Hartung. Como a legislação, tanto mineira quanto federal, exige que o produtor de queijo utilize o leite da própria fazenda, é impossível a sua manufatura industrial.


As diferenças entre as três principais procedências não são destacadas no documentário de Ratton, mas são marcantes para quem prova os queijos. O do Serro é mais ácido, com maior teor de sal e consistência massuda. O do Alto Paranaíba é o que tem maior semelhança com o queijo industrializado. O da Canastra é o mais afamado, não sem razão: é cremoso, de forte sabor e funde quando suavemente esquentado. O documentário mostra que o do Serro é o mais antigo: trata-se da região mais próxima da área mineradora e herdou a tecnologia de portugueses oriundos da serra da Estrela. Mas faltam explicações para a excelência do queijo da Canastra: uns citam a tradição familiar, outros a excelência da água, oriunda da nascente do rio São Francisco ao pé da serra. A melhor explicação é a do mais humilde fabricante ouvido por Ratton: a presença de pastagens de capim-gordura influi na qualidade do leite do gado da região.
Segundo Ratton, a nova norma do governo mineiro que estenderá a todo o Estado a certificação estadual pode evidenciar ainda mais o quadro de miséria que existe entre os produtores. “O problema é que a oferta poderá crescer, sem que cresça o mercado consumidor. O queijo artesanal só pode ser vendido em Minas, por um desacordo entre a legislação federal e a legislação mineira. É por isso que o queijo artesanal aqui é mais barato do que o industrial”, disse. Um quilo de queijo artesanal da serra da Canastra, no mercado central de Belo Horizonte, pode ser encontrado a cerca de R$ 13, ante cerca de R$ 17 do queijo Minas padrão. No filme de Ratton, feito em 2010, produtores afirmam vender o produto a R$ 7 o quilo.
Como é feito com leite cru, a comercialização do legítimo queijo mineiro sofre restrições do Ministério da Agricultura, já que, como se sabe desde a época de Pasteur, muitas bactérias são eliminadas com a fervura, sobretudo a “Staphylococcus aureus”, que pode ser transmitida pelo leite se a vaca estiver com mamite. O suposto risco de contrair uma gastroenterocolite consumindo queijo artesanal é recebido aos risos pela maior parte de seus consumidores e pelos produtores, mas foi o que norteou o Ministério da Agricultura a exigir que o queijo feito com leite cru passe por um período de maturação. À medida que o queijo é envelhecido, ele desidrata, o que ajuda a eliminar bactérias.


O queijo artesanal foi atirado na clandestinidade em 1996, quando o Ministério da Agricultura baixou a portaria 146, estipulando um prazo mínimo de 60 dias de maturação para que a venda fosse permitida. Guardado por esse prazo, o queijo artesanal torna-se bastante amarelo e com casca bem dura e os produtores reclamam que a aceitação do produto no mercado é menor. O queijo mineiro só sobreviveu em Minas porque o então governador Itamar Franco editou em 2000 uma norma estadual permitindo a venda aos mineiros do queijo elaborado com leite cru com maturação mínima de 21 dias.
A luta que existe em Minas, amplificada pelo documentário, é para que o governo federal revise o prazo de maturação, o que abriria para o queijo artesanal as portas não só dos mercados paulista e fluminense, mas do mercado exterior. Os produtores poderiam sonhar em obter certificados de documentação de origem controlada (DOC), como o espumante de Champagne ou o uísque da Escócia. “O primeiro passo será conseguirmos a equivalência da fiscalização estadual à federal para derivados de leite. Em termos técnicos, o reconhecimento do selo mineiro no Sisbi [Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal]. No caso da carne, conseguimos depois de oito anos. Agora vai demorar menos”, aposta Hartung.
Ratton é mais pessimista. “Há interesses industriais em retardar esse processo. No fundo, é uma derivação da luta da agricultura familiar com o agronegócio.”
Em São Paulo, o queijo da Canastra pode ser encontrado em poucos restaurantes, que oferecem o produto com maturação de até 90 dias. “Eu uso o produto conforme estabelece a lei federal. Depois de uma maturação muito longa, é possível degustar o queijo em lascas ou ralado”, comenta a chef Ana Luiza Trajano, dona do restaurante Brasil a Gosto. Para Ana Luiza, “a legislação deveria fomentar o aumento da fiscalização e não criar regras que limitam tanto a oferta disponível fora de Minas”. Ana Luiza vê na mesma situação de marginalidade do queijo mineiro artesanal outros produtos que estão na raiz da gastronomia brasileira. Ela cita o mel silvestre, a rapadura e outros queijos como o requeijão-manteiga e o coalho, no Nordeste, e o de búfala do Marajó, no Pará. “Querem inviabilizar a venda de queijo de leite cru, mas se esquecem que na França e na Itália mais de 70% é fabricado com essa matéria-prima”, queixa-se.