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Artigo de Carlos Dória: “Leite cru, sem ojeriza”

Carlos Alberto Dória responde ao artigo “É seguro consumir queijos artesanais?”, do engenheiro de alimentos Weskley Cotrim, publicado no jornal Estado de Minas, em 02 de maio de 2011. O artigo de Dória traz novos elementos ao debate que tem esquentado nos últimos meses com apreensões, audiências públicas e argumentos prós e contras que ganham cada vez mais espaço em jornais e redes sociais. Dória é doutor em sociologia, pesquisador-colaborador do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFHC) da Unicamp e também diretor e colaborador da SerTãoBras. Tem quatro livros publicados. O artigo a seguir foi publicado no dia 30 de maio no caderno Agropecuário, do Estado de Minas.

Leite cru, sem ojeriza

por Carlos Alberto Dória

O Estado de Minas publicou no seu Caderno Agropecuário (do dia 2) um artigo de interesse geral, do engenheiro de alimentos Weskley Cotrim, sob o título “É seguro consumir queijos artesanais?” O tom “ponderado” do artigo sugere que estamos diante de uma dúvida original, alinhando argumentos prós e contras.  Mas a sua conclusão é inequívoca: “Não queremos aqui advogar pelo uso de leite não pasteurizado ou a não refrigeração de produtos lácteos processados de forma artesanal”.

Como se vê, o engenheiro é contra o uso de leite não pasteurizado, tese que mistura com outra questão: a refrigeração.  Digamos que é preciso separar as coisas: de um lado o “perigo” intrínseco ao leite cru; de outro, as condições de produção e armazenamento.

O banimento dos produtos artesanais de leite cru só faz reforçar os grandes laticínios

Não é, porém, um artigo tão inocente quanto parece à primeira leitura. Ele faz eco a uma verdadeira ojeriza que tem tomado conta dos meios de comunicação, inclusive a propaganda. Os horários nobres das TVs estão coalhados de propaganda de produtos de limpeza ambiental e corporal. Dizem analistas apressados que a nova classe média ascendente (a “classe C” que atualmente leva a culpa de tudo) deseja um ambiente e um corpo livre de sujidades. Até desodorantes íntimos femininos caem nessa classe, projetando uma mulher moderna com aroma de tartelette de morango, conforme já denunciaram feministas.

O que chama a atenção é o caráter genérico dessa investida contra o mundo invisível a olho nú. Há uma propaganda onde uma especialista diz conviver diariamente com “germes e bactérias” e, contra elas, sugere o uso de um sabonete que, magicamente, colocaria as crianças fora de perigo. A palavra “germe”, como a palavra micróbio, remetem a um linguajar do século XIX, quando ainda não se conseguia diferenciar claramente entre os microorganismos.

Há também trabalhos de alcance mais geral, como os de Laurence Bérard e Philippe Marchenay, que bem mostram como as normas sanitárias europeias tem sido usadas pela grande indústria para pressionar pela proscrição do leite cru – como no caso conhecido do queijo camembert.

Esse é o mesmo argumento, por exemplo, de defesa da pasteurização do leite cru, que “é responsável pela eliminação de bactérias patogênicas, capazes de causar sérias doenças, algumas das quais podem levar ao óbito”. É verdade. Mas esqueceu de acrescentar que o mesmo método de pasteurização destrói também as bactérias e demais microorganismos benéficos à saúde e favorecedores da maturação do queijo. Trata-se, então, do método de se jogar a criança com a água do banho.

Nosso ponto de vista é simples: em vez da avaliação dos reais riscos à saúde, em vez da assistência crescente que merecem os pequenos produtores, o banimento dos produtos artesanais de leite cru só faz reforçar o lado mais forte dessa luta onde o pequeno agricultor é submetido, com a ajuda policial do Estado, ao modo “lactalista” de produção: o grande capital que se assenhora dos laticínios, através de crescentes fusões e aquisições, impõe também o seu processo de produção sob a máscara de “modelo sanitário”. Assim, argumentos apresentados como “ponderados” nada mais fazem do que asfaltar o caminho do grande capital na indústria alimentícia. Indústria que, nos países do dito “primeiro mundo” inclusive já abandonaram a pasteurização em favor de técnicas mais modernas de esterilização, como a microfiltração, ou o “termização”.

Mas há fatos que, com isenção, podem ser alinhados em defesa do produto de leite cru. Basta, por exemplo, conhecer os trabalhos de Dominique Angèle, Vinciane Dufour e Marie-Christine Moreau – ligadas a instituições como a Faculté de Médicine et de Pharmacie, o INRA, etc – que mostram os danos epidemiológicos originados na pasteurização do leite, como a aparição de alergias,  e o papel da alteração da microflora intestinal no desenvolvimento desses problemas. Dominique Angèle, através de estudos minuciosos, prova como o queijo de leite cru tipo “Comté” não implica em qualquer risco microbiológico patogênico. Há também trabalhos de alcance mais geral, como os de Laurence Bérard e Philippe Marchenay, que bem mostram como as normas sanitárias europeias tem sido usadas pela grande indústria para pressionar pela proscrição do leite cru – como no caso conhecido do queijo camembert.

Assim, há uma grande pressão pela proscrição geral do leite cru mesmo na França, país onde há séculos se produzem centenas de queijos tradicionais a partir dessa matéria-prima. São os grandes produtores que agitam, contra esse mercado, o fantasma da contaminação pela Listeria. A “listería”, ou histeria da Listeria, tem pouca base objetiva. Consiste em fazer um carnaval a partir de uma doença rara.

Segundo os estudos disponíveis, a contaminação por Listeria pode se dar de várias maneiras (na oficina de fabricação, no lugar de maturação dos produtos, bem como no refrigerador do consumidor) e, em geral, tem como origem a silagem de alimentação animal. Por outro lado, “um queijo pasteurizado, onde toda a flora microbiótica inicial foi destruída, não está isenta de uma recontaminação posterior. Por outro lado, contrariamente aos queijos de leite cru, o pasteurizado não tem a vantagem da presença de uma flora microbiótica capaz de entrar em competição com as floras patogênicas” (L´amateur de fromage, nº 23, abril 1999).

Mas há que se concordar com o nosso engenheiro: “com os avanços da engenharia de alimentos, já se sabe que, tão importante quanto uma matéria-prima de boa qualidade, o processo de fabricação, especialmente as Boas Práticas de Fabricação (BPF), é peça chave para a obtenção de produtos seguros”. Devia ele, portanto, ater-se ao que é possível concluir: a incapacidade do Estado em impor à sociedade, através de várias políticas de auxilio ao produtor e de vigilância sanitária de caráter pedagógico, a segurança alimentar.

Leia o artigo de Weskley Cotrim: “É seguro consumir queijos artesanais?”

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