Em Minas Gerais, três cursos de cura de queijos para um público diversificado. Resultado: a pororoca entre os rios do conhecimento secular queijeiro francês e o oceano dos queijos artesanais brasileiros
Por Débora Pereira. Fotos de Délphine Gehant, Maira Buarque, Paulo Márcio e Valéria Rodrigues
O que é um bom queijo? “Aquele que é vendido”.
A maior surpresa da professora Delphine Gehant foi descobrir que, em Minas Gerais, o período de maturação ideal de um queijo é determinado pela legislação sanitária. “Na França, esse tempo de cura é determinado pelas associações dos produtores, pelo resultado que elas querem obter no queijo que irão vender, um queijo bom é aquele que o consumidor decide comprar”, resume a professora. Para ela, um queijo que não está bom para ser consumido no momento que sai da forma, em termos de sanidade, não estará depois que o tempo passa. “Pelo contrário, na nossa legislação francesa, um queijo deve ter zero de Listeria ao sair da fabricação, mas temos uma tolerância maior (até cem por amostra) alguns dias depois, no momento em que ele é comercializado, pois sabemos que contaminações podem ocorrer durante o transporte e a comercialização”.
Primeiro curso. São Roque de Minas renova seus velhos conceitos
Guiadas por João Carlos Leite, presidente da Aprocan, visitamos a sede da Saromcredi, banco cooperativista que desempenha papel importante na economia da cidade; a escola, onde ensinam crianças a fazer queijo; e algumas fazendas de associados da Aprocan. Delphine achou tudo super limpo e as salas de cura enormes em relação à quantidade de queijo em maturação. “Com temperatura ambiente e humidade que não mantém a maciez do queijo, os queijos tendem a secar, é uma pena, tanto investimento e um produto que talvez não seja bem aceito no mercado por ser muito seco e quebradiço” ela resumiu.
Mofos saudáveis
As maiores dúvidas dos produtores da Canastra eram sobre a sanidade dos mofos que têm nascido naturalmente em suas salas de cura. “Germes patogênicos só tem quatro” explicou Delphine “Listeria (um tipo somente, a monocytogenes, entre milhares de tipos),Staphylococcus aureus, E. coli e Salmonella”. Tirando isso, todos os mofos, aqueles que dão manchas amarelas fosforescentes ou salmão, os mofos azuis, brancos, vermelhos, todos podem ser consumidos” completou ela.
Os alunos do curso de São Roque, favorecidos por uma turma pequena de 35 alunos, não desgrudavam o olhar da professora. A degustação dos queijos franceses foi fundamental para mostrar o que é possível ser feito e para mostrar que o paladar é algo muito cultural: não adianta fazer queijo muito forte ou fedorento no Brasil que não vai vender, a não ser para um público muito seleto, dos mercados de nicho gourmet.
Uso de silo
Delphine explicou que a cura do queijo começa desde a fabricação e, inclusive fatores anteriores, como a alimentação das vacas, interferem no gosto dos queijos. “O uso de silagem é algo que deve ser evitado, não somente por propiciar um gosto considerado por alguns analistas sensoriais como “desagradável”, mas também pelo risco de contaminação com bactérias que produzem ácido butírico, por exemplo o Clostridium, que se multiplica facilmente em ambientes anaeróbios como milho ou cereais fermentados” explicou a professora. Essas bactérias causam inchamento tardio e mau gosto nos queijos, mas não provocam intoxicação no ser humano (ao contrário das butíricas das latas de conserva). A solução no caso desse problema está na melhora da qualidade bacteriológica dos alimentos do rebanho e na gestão da salga.
O curso apresentou soluções para outros defeitos de cura, como cascas rachadas ou pegajosas, sabor amargo ou ainda queijos de coração branco e casca muito cremosa, entre outros.
Segundo curso. Em Belo Horizonte, um auditório engajado e heterogêneo
Em Belo Horizonte, produtores de queijo de diversas regiões do Brasil, fiscais agropecuários, instrutores de boas práticas, professores, pesquisadores, comerciantes de queijos e chefs de cozinha trocaram suas experiências e dúvidas. A realização do curso foi possível graças ao apoio da FAEMG e contou com a presença do presidente Roberto Simões e do superintendente Altino Rodrigues, que trabalha com políticas para valorização do queijo há mais de 20 anos em Minas Gerais.
Diferenças entre o queijo artesanal e o industrial
Dando fim à discussão sobre o sexo dos anjos do queijo artesanal brasileiro, Delphine explicou que um queijo artesanal é aquele que o produtor se adapta ao leite, cuja qualidade e composição variam ao longo do ano, e aceita as variações sazonais do queijo, enquanto o industrial é aquele que o leite é “adaptado” à tecnologia de fabricação, num processo de estandardização para obter sempre o mesmo produto. O bom artesão é aquele que busca um queijo igual o ano todo, mas sem alterar a composição natural do leite. E se o queijo estiver diferente, a saída é aceitar e conscientizar os consumidores que é normal essa sazonalidade.
Terceiro curso. No Serro, esforço coletivo para valorizar o queijo
O curso para os produtores dos onze municípios da região do Serro foi possível graças ao empenho do presidente do SinSerro, Roberto Maravilha de Castro Teixeira e à ajuda da Faemg. Junto aos produtores, pesquisadores como a professora Célia Ferreira, José Manoel Martins, Cleube Boari, Renata Bonini e SôniaCampos enriqueceram o conteúdo do curso com suas observações.
Roberto nos levou para conhecer as instalações da cooperativa, que produz queijo pasteurizado e coleta queijos de leite cru dos mais de 170 produtores registrados no IMA. Ele desenvolveu um “controle de qualidade” bem prático para receber os queijos: o queijo é colocado em um tanque com água, se boiar é porque está “rendado” e é devolvido ao produtor. “Nós temos reclamações dos comerciantes quando o queijo está rendado e eles recusam o produto” justificou Roberto. Nesse caso, a saída seria enviar os queijos para a venda em São Paulo, onde os “furadinhos” são muito apreciados pelos consumidores mais populares. Mas, infelizmente, a legislação não permite a comercialização desse queijo fora do estado de Minas Gerais… o que dá margem para as “inconfidências queijeiras” e para o comércio informal.
Preservar a microbiodiversidade evitando cloro e água sanitária
“Cloro e água sanitária, só em caso de contaminação grave, comprovada por exames” reforçou a professora para os alunos do Serro, que custaram a acreditar nessa informação que contraria o que é ensinado nos manuais de “boas práticas”. “Essas e outras substâncias desinfetantes empobrecem o ambiente, matando as boas bactérias que ajudam a acidificar o leite e a dar mais gosto e tipicidade aos queijos”, explicou a professora. “Um leite muito limpo é um leite pobre em germes” reforçou Delphine “e isso dificulta a cura do queijo“.
Como o leite sai estéril do mamilo da vaca, ele começa a ser “povoado” de bactérias desde a ordenha até a fabricação. Essas bactérias podem ser semeadas posteriormente, nas salas de maturação.
A presença dessas bactérias tem inúmeras funções: ajudar na cura (na proteólise) do queijo, provocar olhaduras (algumas podem ser desejadas), provocar o aparecimento de aromas e sabores, acidificar ou alcalinizar a massa (dependendo dos germes) ou ainda contribuir para a formação de um determinado tipo de casca.
Os participantes do curso do Serro foram convidados para uma confraternização no casarão de Maria Coeli, irmã do presidente da Associação dos produtores do queijo do Serro, Jorge Simões. “Percebemos que os queijos de Minas Gerais têm forte história e tradição, só por isso estão resistindo aos constrangimentos da legislação”, concluiu Delphine.
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Quando haverá outro curso do maturação de queijos na região de BH?
Quando haverá outro curso do maturação de queijos na região de Belo Horizonte