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O leite nas mãos da gente*

O leite é essencial para o sustento e saúde do povo. A cadeia leiteira popular, independente, é abastecida por pequenos vendedores que coletam o leite dos pequenos agricultores, donos de uns tantos animais leiteiros. Tais sistemas de “leite popular”competem diretamente com as ambições e investidas das grandes indústrias lácteas, como Nestlé e outras, que querem apoderar-se de toda a cadeia leiteira—dos estábulos aos mercados.

A cadeia leiteira popular, ou leite popular, na Colômbia

Bem cedo de manhã, todos os dias, antes da maioria das pessoas saírem da cama na Colômbia, cerca de 50 mil vendedores de leite fazem suas entregas pelas ruas das cidades espalhadas pelo país. Estes “jarreadores”, como os chamam, andam de moto com grandes latões de leite que coletam em alguns dos milhões de locais nos interiores colombianos.

Distribuem diariamente 40 milhões de litros de leite fresco a um preço que cerca de 20 milhões de colombianos podem pagar, para depois ferver rapidamente e assim garantir seu saneamento. Talvez não haja fonte de nutrição e dignidade tão importante na Colômbia quanto ao que vieram chamar da cadeia leiteira popular, ou leite popular.

Os jarreadores, ou leiteiros, têm protestado, junto com pequenos agricultores, fábricas de laticínios em pequena escala e os consumidores contra as repetidas intenções do governo colombiano de destruir a cadeia leiteira popular ou leite popular.

Em 2006 o governo do presidente Uribe emitiu o Decreto 616 que proíbe o consumo, venda e transporte de leite cru ou não pasteurizado, o que torna ilegal o leite popular. O decreto desencadeou enormes protestos por todo o país que forçaram o governo a prorrogar a adoção da norma. A oposição popular não se apagou e dois ou três anos depois mais de 15 mil pessoas marcharam por Bogotá, capital do país. O governo se viu forçado a colocar de lado a questão por outros dois anos.

O Decreto 616 não foi a única ameaça contra o leite popular. Mesmo que a Colômbia seja auto suficiente em leite, os tratados de livre comércio, em processo de negociação com alguns países exportadores de lácteos, podem anular proteções chave para o setor, tornando-o vulnerável às importações de leite em pó barato—especialmente da União Européia, onde a produção de leite conta com fortes subsídios. Nas palavras de Aurelio Suárez, diretor executivo da Associação Nacional pela Salvação Agropecuária, um tratado de livre comércio com a UE seria uma “verdadeira hecatombe” para o setor de leite da Colômbia.

Em 2010, houve outra tentativa de impor uma regulamentação proibindo o leite popular, e os opositores se uniram contra os tratados de livre comércio propostos. Houve movimentos massivos que não deixaram ao governo opção outra do que prorrogar a regulamentação para março de 2011, momento em que surgiu uma nova onda de manifestações e o governo não pode senão reconhecer a sua derrota. Em maio de 2011, foi assinado o Decreto 1880, que reconhece que o leite popular é legal e essencial.

Vendedores locais vão a lugares ermos para adquirir o leite a ser distribuído (Foto: mw2.google)

Esta impressionante série de vitórias  da denominada cadeia leiteira popular na Colômbia, é algo que pode inspirar a muitos movimentos semelhantes em outras partes do mundo na luta por quem produz e vende lácteos em pequena escala. Supostamente, a batalha não terminou. Foi aprovado um tratado de livre comércio com os Estados Unidos e concluíram  apenas as negociações em torno de um tratado com a União Européia. Mas o setor leiteiro está agora no coração da resistência popular contra tais arranjos e, aconteça o que acontecer, está claro que o leite popular (ou cadeia leiteira popular) estará presente nas lutas do  povo colombiano contra políticas do governo e por um novo caminho de transformação social.

A luta é contra uma forte tendência global. Os lácteos, como outros alimentos e setores da agricultura, têm sofrido diante de grandes consolidações durante as últimas décadas. Hoje, várias multinacionais, como Nestlé e Danone, vendem seus produtos lácteos em qualquer canto do planeta. E a consolidação acontece na produção e instalações rurais também. Crescem os rebanhos leiteiros, novas tecnologias os confinam ainda mais e a produção de leite por vaca aumenta. Além disto, o setor financeiro injeta dinheiro novo no negócio dos lácteos, buscando uma parte das ganâncias.

Mas em quase todo o mundo, o leite e produtos lácteos seguem na maior parte nas mãos do que o governo e a indústria chamam de “setor informal”—os pequenos agricultores que vendem seu leite diretamente, ou por meio dos vendedores locais que vão aos lugares mais ermos para comprar o leite dos pequenos produtores e o levam direto aos consumidores. Os dados disponíveis indicam que a cadeia leiteira popular responde por mais de 80% do leite comercializado nos países em desenvolvimento, e 47% do total global.

Na Índia, maior produtora de leite do mundo, o leite popular ainda abastece 85% do total do mercado nacional de leite. A “revolução branca”, que viu triplicar a produção de leite entre 1980 e 2006, foi fruto deste setor popular. Foram os pequenos agricultores da Índia, e os mercados locais, os condutores da enorme expansão da produção leiteira no país nestes anos. Hoje 70 milhões de propriedades rurais na Índia mantém animais leiteiros, e mais da metade do total de famílias rurais do país e mais da metade do leite que produzem (sobretudo leite de búfala) vai para alimentar as pessoas de suas próprias comunidades, enquanto que ¼ é processado como queijo, iogurte e outros produtos lácteos, fabricados por este “setor local não organizado”.

São muitas as contribuições do leite popular para a vida das pessoas por todo o mundo. É fonte-chave de nutrição—é um alimento de subsistência para quem tem animais, e um alimento que se pode comprar por quem não os têm. O leite fresco popular tende a ser muito mais barato do que o leite processado e embalado vendido pelas indústrias. Na Colômbia o preço do leite popular é menos do que a metade do preço do leite pasteurizado e embalado vendido nos supermercados. O mesmo no Paquistão, onde os gawalas (vendedores ambulantes) vendem o leite fresco que coletam nas propriedades rurais para a população consumidora, a metade do preço do leite embalado ou industrial.

Para os pequenos agricultores, o leite popular oferece umas das poucas fontes de renda sólidas e regulares. Dado que o leite é perecível, é também fonte importante de renda para os pequenos vendedores que o recolhem diariamente dos pequenos produtores para levar a consumidores que diariamente compram leite, queijo, iogurte e outros produtos lácteos frescos. Os costumes culturais de esquentar o leite ou fermentá-lo garantem que seja seguro seu consumo.

As elites tratam com desdém o “setor informal” e consideram seus produtos não higiênicos ou de má qualidade, e o sistema é visto como ineficiente. Alguns inclusive se queixam de que não pagam impostos.

A verdade é que os pequenos produtores, os pastores e trabalhadores sem terra, nos mostram que produzem leite suficiente para satisfazer as necessidades do povo, e os vendedores e fabricantes em pequena escala sabem muito bem como assegurar que o leite e outros produtos lácteos cheguem em bom estado aos mercados. “O setor não organizado” pode fazer as coisas muito bem sem as grandes industrias, quando se não os acaba com práticas desleais que abaixam o preço diante de excedentes de leite ou se não os persegue com regulamentos injustos.

Nos mercados onde há tempo eram vendidos lácteos industrializados, o leite popular está voltando. Dos Estados Unidos à Nova Zelândia os mercados de compras diretas do leite dos produtores, orgânico ou cru, crescem na medida em que as pessoas procuram por alimentos de qualidade fora do sistema industrial. Os pequenos produtores também estão fartos do modelo dominante. A virada para a produção intensiva os amarrou diante dos altos custos e dívidas: os preços do leite raramente cobrem os custos de produção. As comunidades rurais onde vivem os pequenos produtores estão fartas da poluição gerada pela presença das mega fazendas leiteiras. Há um impulso em prol de novos modelos de produção e distribuição que protejam os modos de vida dos pequenos produtores locais e proporcionem aos consumidores alimentos de qualidade.

Sem dúvida, o movimento em prol do leite popular depara com as ambições que controlam a indústria global dos lácteos, algo que em conjunto poderia chamar-se “Os Grandes Lácteos”. Neste momento em que os mercados de lácteos no Norte estão saturados, Os Grandes Lácteos dirigem suas baterias aos mercados abastecidos pelo leite popular. Estas corporações leiteiras e algumas ricas elites intencionam, juntas, reorganizar toda a cadeia de abastecimento, dos pequenos produtores, ou estábulos leiteiros aos mercados.

*Este é um trecho da versão resumida do documento de GRAIN, “El gran robo de la leche. Cómo es que los ricos y poderosos le roban una vital fuente de nutrición a los pobres”, www.grain.org
 

Traduzido do espanhol por Robin Geld.

Leia o artigo original (em espanhol)

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