Geografia do imaginário nacional mostra que o Brasil briga com o passado em nome de uma modernidade excludente `
Por Carlos Dória – Blog e-bocalivre
Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi
(“Geléia Geral”, Torquato Neto)
Estranha forma de vida a do Piauí. Um Estado sempre esquecido da nação, apesar de ser o terceiro maior do Nordeste em tamanho (só perde para Bahia e Maranhão) e possuir uma população de aproximadamente três milhões de pessoas, tendo seu território dividido entre o semi-árido e a pré-Amazônia.
De repente, sem que haja feito nada em especial, o Estado envolve-se num bate-boca momentoso da política nacional. Foi o presidente da Phillips, Paulo Zottolo, líder dos “cansados”, quem começou. Sem mais nem menos, disse: “Não se pode pensar que o país é um Piauí, no sentido de que tanto faz quanto tanto fez. Se o Piauí deixar de existir, ninguém vai ficar chateado”.
A frase infeliz só pode se explicar pelo fato de sua empresa, a Phillips, vender poucos gadjets por lá. Afinal, para ele, só deve existir o mundo dos shopping-centers e das lojas de varejo de eletrodomésticos. Mas foi igualmente surpreendente a reação do governador do Estado, Wellington Dias. Chamou a atenção para a beleza natural, para o potencial turístico e para o fato de que o Estado é um grande produtor de mel.
O senador Mão Santa, por sua vez, lembrou que Teresina é a “primeira cidade planejada do Brasil” ,
Claudio Lembo, querendo tirar a sua casquinha paulista, disse que “só fala mal do Piauí quem não conhece a história do Brasil”: o homem americano nasceu no Piauí e bandeirantes paulistas colonizaram o Estado. Desculpando-se pela ignorância, o homem da Phillips remendou: “O Piauí hoje é um Estado pouco conhecido no Brasil. As pessoas não sabem o que tem no Piauí”.
É difícil saber em que o “homem americano” de milhares de anos atrás influencia o Piauí do presente, ou porque uma “cidade planejada” é superior às mal traçadas ruas das caóticas cidades coloniais; mas certamente é fácil reconhecer que vivemos o “momento Piauí” -saibamos ou não o que tem dentro dele.
O pé de galinha
Quando a senhora destampa a panela de barro à mesa, exibindo com orgulho a galinha de capoeira (“caipira”) ao molho, o aroma invade o ambiente. Em meio ao caldo amarelado e os pedaços de carne destaca-se, como um monumento, o pé e os três dedos tesos do animal -último testemunho de que andou a ciscar por aquele sertão.
Imagino o desmaio de uma mocinha qualquer, acostumada a se alimentar nos shoppings de São Paulo, almejados pela Phillips, ao ver o conteúdo desta panela. Felizmente não há ninguém assim à mesa, naquela distante Picos, cidade da chapada do Araripe, Piauí.
Gente afável e dinâmica, sem a malemolência que se atribui ao nordestino litorâneo, e dona de uma culinária surpreendentemente delicada, com sua profusão de refogados e ensopados: de frango, carneiro, cabrito, galinha d´angola (“capote”, dizem), pirões -tudo com o uso moderado da pimenta que vemos em profusão no litoral.
O mais é arroz, cuscuz de milho, mandioca. São as miuças, e não o boi, que avultam na panela. Coisa de gente pobre, de vida simples, e se vê que por ali andou um antigo Portugal a deitar raízes, longe do padrão colonial que a máquina mercante do açúcar impôs.
A ‘”civilização do couro”
Diferente da civilização do açúcar, o Piauí, como todo o sertão pecuário, não teve historiador que lhe contasse a história como história “nacional”. Antes de Euclides da Cunha, a percepção do sertão inexistia. Ficou à margem de tudo. Sempre igual, “o ano que vem e o mês que foi” da imagem poética do célebre piauiense Torquato Neto. Mas um problema historiográfico é sempre um problema político, como se vê agora.
Somente o historiador Capistrano de Abreu foi sensível a essa questão. Observando a historiografia nacional, centrada nos feitos “heróicos” de uma elite branca aboletada no litoral, sentiu a falta “do povo” e se propôs a traçá-la, especialmente escrevendo uma “história do sertão” -projeto que, infelizmente, nunca levou ao fim.
Esta “história” teria umas 400 páginas e nos relataria os séculos 16 e 17 a partir da conquista e do povoamento da região entre o São Francisco e o Parnaíba. Limitou-se a escrever os “Os Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasil”, publicado a partir de 1899, explorando a tese do Frei Vicente do Salvador de que “é preciso penetrar o Oeste, deixar de ser caranguejo, apenas arranhando praias, a oposição do bandeirismo ao transoceanismo”.
Capistrano descreveu pela primeira vez, com base em documentos coloniais, como se conquistou o sertão, a partir de São Paulo e da Bahia. Este foi ocupado para produzir gado para os engenhos, por obra da famosa “casa da Torre” (localizada onde hoje é a “praia do Forte”, no litoral norte de Salvador), da família Garcia d´Ávila, fundando-se o que ele chamou de “civilização do couro”.
O Piauí era um grande “fundo de pastos” onde se criava solto o boi, quase sem dono, como um estoque regulador de toda a pecuária do Nordeste (“O meu boi morreu/ o que será de mim?/ Manda buscar outro maninho, lá no Piauí”…).
Escreve Capistrano de Abreu: “De couro era a porta das cabanas, o rude leito aplicado ao chão duro, e mais tarde a cama para os partos; de couro todas as cordas, a borracha para carregar água; o mocó ou alforge para levar comida, a mala para guardar roupa, mochila para milhar cavalo, a peia para prendê-lo em viagem, as bainhas de faca, as bruacas e surrões, a roupa de entrar no mato, os bangüês para curtume ou para apurar sal; para os açudes, o material de aterro era levado em couros puxados por juntas de bois que calcavam a terra com seu peso; em couro pisava-se tabaco para o nariz”.
A pecuária deixa poucos traços civilizatórios. Mas foi suficientemente forte para atrair, para o interior da província, em meados do século 19 (1852), a capital do Piauí. Restou o litoral que, hoje, é uma extensão do turismo praieiro mais típico do Ceará e Maranhão.
O litoral do Piauí é um enclave nessa indústria turística dos estados vizinhos. Isso, cruelmente, dá razão aos seus detratores que se arvoram juízes do espaço nacional: afinal, há praias mais próximas do mercado do Sudeste, e o país todo é “abençoado por Deus e bonito por natureza”.
O “dilema Piauí”
Ora, a “civilização” interior a que pertence o Piauí é o que de mais original o Brasil produziu, além da sociedade indianizada do Pará, onde, até avançado o século 19, falou-se a “língua geral” tupinizada que os jesuítas sistematizaram e ensinaram.
Mas não é fácil valorizar a história local quando não se está convicto de que ela expressa a modernidade. Ou, em outras palavras, como se pode entrar na modernidade sem tirar o pé do passado? O sucessor do couro sertanejo é o plástico, não as bolsas Hermès.
É inegável que o título da nova revista “Piauí” também expressa a consciência desse deslocamento. A declaração do presidente da Phillips explicitou como Piauí vem se tornando uma palavra-chave para os cansados do Brasil já há algum tempo, ao menos desde o lançamento da revista carioca. Há, no título da publicação, uma antinomia, talvez involuntária, intuitiva, como um ponto de fuga da pintura nacional para os bem-pensantes. Ponto de fuga no sentido de um lugar ideal, para onde convergem as linhas imaginárias da cena, pois para eles o Piauí real simplesmente não existe.
Almas penadas do sertão
Viajando pelo sertão, vê-se a encruzilhada dos “Piauís” reais. Extensas e monótonas retas do traçado das estradas sertanejas, no sertão da chapada do Araripe, em direção a Picos, só são perturbadas por pequenas manadas de jegues que, despreocupados, atravessam o asfalto. São animais sem dono, abandonados depois que se tornaram inúteis pela adoção das motocicletas com principal meio de transporte sertanejo. Tange-se o boi de motocicleta e o jegue vale tanto quanto um cão abandonado.
São grupos de 10, 20, até 40 animais a vagar sem dono. De noite, deitam-se sobre o asfalto para absorver o calor, provocando acidentes horríveis. Vez por outra, os prefeitos recolhem todos os jegues em caminhões, libertando-os 100 ou 200 km adiante. Os jegues são as novas almas penadas do sertão. Expressam o sem-lugar da civilização do couro na modernidade.
Aqui e ali esse sertão vai sendo penetrado por ela. Nos restaurantes de Juazeiro do Norte (CE), vizinho ao Piauí, e distante do litoral, os pratos típicos já escorregaram para o pé do cardápio, abrindo espaço para os camarões, a lagosta a Termidor, o bife “ala parmejana” (sic), mostrando que o turista traz consigo, na bagagem, o germe da desnaturação.
A viagem anônima do Piauí
O Piauí é um grande produtor de mel no Brasil. O Sebrae em breve inaugurará uma fábrica de beneficiamento de mel produzido de modo artesanal, por dezenas de cooperativas de apicultores.
A diversidade da flora apícola é surpreendente. O mel derivado de algumas plantas do sertão é de delicadeza e aroma sem igual. Os alemães, que já se deram conta disso, importam esse mel das várias floradas, misturando-os na Alemanha com outros e fazendo um blend apreciado no mercado europeu. O Piauí viaja dentro do mundo. Anônimo.
O Brasil, ao contrário, não conhece esse mel. Ele é vendido genericamente, como commodity, concorrendo em desvantagem com o preço do mel que vem da Argentina e da China, os maiores produtores mundiais.
No Piauí também se produz caprinos e ovinos a partir de raças locais, distintas das demais, e que ninguém fora de lá conhece em sua especificidade. Há sinais de que cordeiros uruguaios já chegam fatiados e embalados pelo sertão. Afinal, como ser “autêntico” numa linguagem moderna, gerada no terreno do marketing, que supõe grandes interesses articulados de forma transnacional?
Mas o Piauí não é tão distante para o movimento expansionista do capital; afinal, Teresina vive um boom imobiliário, e já é possível encontrar apartamentos de mais de US$ 400 mil, evidenciando o movimento de concentração de renda que antes não havia por lá. Também a indústria da saúde já se instalou de modo espetacular na cidade, ocupando mais de dez quarteirões numa concentração dificilmente vista em outra parte do país.
Ciclovias modernas acompanham as principais avenidas da cidade. Na antiga casa do barão de Gurgéia -sobre quem poucos ouviram falar-, hoje Casa de Cultura de Teresina, espectros do passado monumentalizam o pátio. Entre estátuas de governadores, burocratas de várias épocas, juristas, um Torquato Neto enfatiotado como se saísse de uma audiência no paço. É a geléia geral brasileira.
Capistrano de Abreu não só ficou a nos dever a obra sobre o sertão, a inserção do povo pobre na história, como anteviu na historiografia oficial das grandes cenas da corte o destino miúdo que necessariamente ficaria para trás. A civilização do couro não deita “civilização”. O carrossel dos shopping-centers não mostra as faces do país.
Pendurado no ar, é esse modo avesso de ser moderno que faz do Piauí um ponto de fuga da pintura nacional, a expressão de uma modernidade atolada num passado que ninguém se decidiu a cavalgar com determinação. Mais do que um sem-lugar no mapa ou uma paisagem “a descobrir”, trata-se de um vazio na consciência política e na matriz cultural da nação.
“Piauí” é a última palavra que embaralha o imaginário nacional. É a fronteira de nós mesmos. Um pé de frango, com estranhamento, nos olha de dentro da panela à qual deu sabor.