O repórter Nélson Araújo mostra a travessia dos tropeiros do parmesão que encontrou na Serra da Mantiqueira.
É uma longa e penosa travessia. Um mapa mostra o rio Aiuruoca, o pico das Agulhas Negras, a divisa de Minas, Rio e São Paulo. Do município mineiro de Itamonte eles marcham quarenta quilômetros até o distrito turístico de Visconde de Mauá, município fluminense de Resende.
Além do queijo, eles também levam outras iguarias feitas num lugar escondido da Serra da Mantiqueira, que fica entre os dois centros mais populosos do país.
O trecho da Mantiqueira mostrado na reportagem é chamado de “mar de morros”. Infinitas as ondas do mar; incontáveis as pregas das montanhas. E pelas dobras afora, como vincos numa colcha de retalhos, se estendem as fazendinhas de leite. Regadas pela água cristalina que desce dos grotões para formar o rio que encantou os bandeirantes e que os índios consideravam como sagrado: o Aiuruoca.
O símbolo da produção rural da cabeceira do rio Aiuruoca é justamente o queijo tipo parmesão. Uma delícia que é servida em quase toda casa da região. Depois de dourar, fica crocante por fora e cremoso por dentro.
Dona Geralda e seu Agnelo são descendentes dos pioneiros que fundaram comunidades rurais nos confins do município de Itamonte, ainda no século dezenove. Seu Agnelo Fonseca é neto do fundador Bruno Fonseca, hoje, nome da escola do povoado de Campo Redondo, enfronhado num bosque de araucária.
Um vilarejo serrano com cara de aldeia portuguesa. Casinhas com telhados de quatro águas, janelas coloniais e barrados coloridos na parede. Seu Agnelo conta que por volta de 1940, 1950, já havia fabriquetas de laticínios no local, consagrando o hábito do queijo na dieta mantiqueira.
Embora possa ficar curado, como o parmesão tradicional, o parmesão da Mantiqueira é consumido preferencialmente jovem até fresco e desde a sua origem até hoje, para os destinos de difícil acesso, é em lombo de mula que ele deixa estas quebradas de serra.
O Jesuel Elzo dos Santos é um dos que mantém a tradição dos cargueiros. Geralmente, sexta-feira, ou véspera de feriado, ele viaja. Balaiada cheia. No jacá, dentro dos cilindros de ripa vai queijo.
A jornada é longa e penosa. De cara requer um super esforço de subida. Ele sai de mil e quinhentos metros de altitude pra galgar o topo das montanhas, acima de dois mil metros. Se fosse uma escadaria daria quase quatro mil degraus.
Vão deixando pra trás as águas prateadas do Aiuruoca. O vento se apresenta forte, o que pode ser facilitar – se assoprar as nuvens pra longe e deixar o dia limpo; ou complicar se puser o nevoeiro no caminho.
Uma porteirinha marca a divisa do primeiro lance da primeira montanha. Gesuel conduz as mulas por uma capoeira alta, meio fechada. Trilha resfriada pelo orvalho os cavalos escorregam. Gesuel aconselha todo mundo a descer. Sorte que nossa equipe de apoio venha puxando as montarias.
Fora o risco pessoal e da tropa, há o risco da mercadoria. Já pensou, Gesuel pergunta, se uma mula cai em riba da carga, o prejuízo que não vai ser? Passado o primeiro lance mais liso, podemos montar de novo, numa baixadinha já na fralda do tope que o nevoeiro começa a cobrir.
À medida que a tropa segue – e olha que tem muita estrada pela frente, a tarde inteira, se tudo correr bem, – vamos voltar no tempo, algumas horas, quando ainda estávamos no pé da Serra Negra. É até engraçado ver como o Jesuel coleta essa carga.
A organização de uma atividade de transporte e abastecimento tem o nome de logística. Geralmente um sistema central com um secundário auxiliar. Pois na logística da tropa de carga do Gesual, o fusca está a serviço das mulas, é o carro dando apoio ao animal.
O carro vem abarrotado. Sobre o banco do carona, no chão, no banco traseiro, tem de um tudo. Uma placona de goiabada cascão para uma senhora do bairro alto. Uma bela peça de parmesão pro dono da pousada da cachoeira. Vem mussarelinha, em cubo e em torinha; doces em compota…
Gesuel recolhe as mercadorias em pequenos sítios num raio de sete quilômetros, na morraria em volta. Uma parte das mercadorias que leva nos cargueiros Gesuel dá apenas poucos passos prá recolher. Pega na cozinha da própria casa.
A irmã dele, Eurídice, é daquelas que foram abençoadas como dom de fazer doce. Enche a mesa de delícias. Faz geléias de pitanga, jabuticaba, amora, moranguinho silvestre; faz doces de abóbora, pêssego, figo… Mais de vinte variedades.
Generosa, Eurídice topa na hora entregar o segredo da receita que criou:
– cinco litros de leite integral;
– dois quilos e cem gramas de açúcar cristal;
– um maço de hortelãs.
Cozinhe tudo no fogo alto. Entre uma hora e quarenta, uma hora e cinquenta, o doce começa a engrossar. E quando fica pastoso, Eurídice cuidadosamente retira toda a hortelã que jogou.
Para guardar em vidro ou comer de colherada já está pronto. Para cortar em pedaços precisa apurar mais mexendo até aparecer o fundo da panela. Neste ponto Eurídice salpica um maço inteiro de hortelã, com as folhas bem cortadinhas e mistura.
E aí vem uma parte que requer preparo físico: durante dez minutos, com o braço forte ela bate o doce sem parar. No instante crucial em que o doce dá sinais de endurecer, Eurídice derrama toda a massa sobre um plástico – o mesmo do saco de açúcar que é mais encorpado. Espera esfriar um pouco Na hora de cortar os pedaços, de passar a faca, o doce tem que lembrar um quentinho, se não, como dizem aqui, a massa esbruga, quebra, vai espedaçar.
Nos cargueiros do Gesuel, o doce da irmã ganha lugar na janelinha. Galeia sua refrescância por cima de tudo… Quando voltamos para a trilha, num ponto já com duas horas de viagem desde a partida.
A viagem do Gesuel é solitária até certo ponto. No Morro Cavado, no alto da Serra Negra, mais de dois mil metros de altitude, divisa dos municípios de Itamonte e Bocaina de Minas. Neste lugar quase sempre o Gesuel encontra alguns companheiros, tropeiros de queijo também.
1 Comentários
Olá,
Como consigo mais informações sobre essa viagem da rota do queijo.
Grato,
Gustavo