Por Maria Cândida Sampaio, Revista Balde Branco, julho 2011 – See in English
Em Minas, a produção de queijo artesanal sofre pressão de legislação federal e pode confinar a comercialização de um produto tradicional aos limites do Estado
Com 300 anos de história marcada por uma ligação cultural e emocional com o povo mineiro e tombado pelo Iphan-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional como patrimônio imaterial, desde 2008, o queijo Minas Artesanal está em meio a um impasse.
De um lado, a lei estadual que define a regularização de sua produção e comercialização; do outro, uma lei federal, de mais de meio século, que proíbe sua venda e a de qualquer queijo feito a partir de leite não pasteurizado, ou cru, fora de Minas.
A questão até já virou cinema, ao ser abordada no filme O mineiro e o Queijo, do diretor Helvécio Ratton, que levanta uma questão fundamental: o que é bom para Minas não pode ser bom para o resto do País? Com certeza, a resposta envolve diversos interesses e uma preocupação em todo o Estado, especialmente com relação aos pequenos produtores que não conseguem se adequar à legislação federal nem tampouco à legislação mineira, de 2002, que criou o Programa Queijo Minas Artesanal.
Depois de o Ministério Público desencadear recentemente uma fiscalização geral, dando uma sacudida em toda a cadeia produtiva, os produtores terão mais dois anos para se adequarem à legislação estadual. No entanto, caberá aos promotores das comarcas a decisão de cumprir ou não tal prazo. A operação de fiscalização, realizada em meados de março, se deu de maneira agressiva e gerou protestos. Foram apreendidos 1.100 kg de queijo em 56 estabelecimentos comerciais, principalmente, por falta de rotulagem e certificação.
Minas tem 853 cidades, sendo que 600 produzem queijos. Dos 30 mil fabricantes, apenas 0,5% têm cadastro na Secretaria de Estado de Agricultura, ou seja, apenas 158, sendo que outros 150 estão em processo de cadastramento. O município de Uberaba, um pólo de comercialização regional incluído no Programa do Quejio Minas Artesanal, em janeiro de 2011, sentiu diretamente os prejuízos da fiscalização. Do mercado municipal, onde são vendidas 17 t de queijos mensalmente, foram retirados e jogados no aterro sanitário da cidade cerca de 800 kg do produto, sem qualquer tipo de análise do produto.
“Um desperdício e absoluta falta de bom senso e de preparo de quem deveria estar do lado dos produtores e da população”, destaca o vereador Marcelo Machado Borges – Borjão. A partir de um arranjo local, capitaneado por ele, aconteceram em seguida reuniões com os produtores nas comunidades rurais e posterior cadastramento, visitas às propriedades para saber a realidade do município, qual o tipo de queijo fabricado, em quais condições e de que maneira poderia ser cumprida a legislação.
O deputado estadual Adelmo Carneiro Leão (PT-MG) considera que as apreensões foram abusivas em todo o Estado e defende uma ação educadora, e não punitiva. Diante disso, sua primeira iniciativa foi enviar um ofício ao Procurador Geral do Estado, Alceu José Torres Marques, solicitando esclarecimentos e informações sobre a ação. Ao mesmo tempo, foi apresentado requerimento à Comissão de Saúde para debater o problema na Assembléia Legislativa, o que ocorreu no dia 20 de abril, quando estiveram reunidos mais de 100 produtores e comerciantes, com 30 cidade representadas.
Normas para a produção e comercialização
“O queijo artesanal é de grande valor econômico para a agricultura familiar. É reconhecido nacionalmente como marca dos mineiros”, destaca Adelmo Leão. Para ele, o problema é tratar como produto da economia do Estado e, como tal, garantir as condições legais para que possa ser comercializado para qualquer região do País. “O mercado está aberto. O problema é criar condições e logística para a produção, comercialização e distribuição”, cita, observando que para isso é preciso ter vontade política.
Nesse sentido, há uma regulamentação em estudo por um grupo formado por técnicos do governo mineiro e deputados. Em curso, a minuta do decreto estadual que vai estabelecer regras de transição até que a lei seja regulamentada. Isso deverá ocorrer em até 60 dias, como informa o gerente de Educação Sanitária do IMA – Instituto Mineiro de Agropecuária, Pedro Hartung. As normas deverão prever, por exemplo, a criação de um fundo de compensação para que esses pequenos produtores possam ser subsidiados na etapa de adaptação ao novo regulamento.
A idéia, segundo a comissão, é possibilitar que essa produção se torne um negócio, uma possibilidade de trabalho e geração de renda, não apenas um complemento. A Associação dos Produtores da Microrregião de Araxá enumerou alguns pontos que considera importante. Entre eles: revisão dos padrões microbiológicos na maturação e umidade do queijo artesanal; implantação de centros de distribuição e controle de qualidade; acesso a crédito específico para adequação das propriedades e compra de animais e insumos; desoneração dos produtores e comerciantes de impostos e inclusão do queijo na merenda escolar.
O deputado federal Paulo Piau (PMDB-MG) teve requerimento aprovado em abril pelo plenário para a realização de uma audiência pública, na Câmara dos Deputados sobre o queijo e a legislação que trata do assunto. Enquanto aguarda confirmação da data, tem repetido que o governo precisa entender que seja na Suíça ou na França, Serro ou Canastra, os queijos especiais precisam de caracterização típica regional. Para elaboração dessa nova legislação deverão ser chamados os técnicos do ministério da Agricultura e de outros segmentos, além dos produtores das diversas regiões.
O governo de Minas, por sua vez, tem questionado formalmente o limite mínimo de maturação do queijo para que possa estar livre de risco à saúde. Inclusive encomendou pesquisas para as principais universidades de Minas e também à Epamig. Em todas as consultas, o resultado aponta segurança alimentar com maturação em 14 dias, no caso da produção do Serro, e de 21 dias para o Cerrado, Canastra e Araxá.
A despeito dos prazos citados é comum observar o ceticismo de alguns produtores ao se referirem ao problema com a constatação de que não conhecem ninguém que tenha “morrido de queijo”.
Queijo Francês como exemplo
Os defensores do queijo artesanal querem um fortalecimento do produto e o devido respaldo por parte do governo. Por exemplo, lembra o deputado mineiro Adelmo Leão, que “a França se recusou a exportar seus queijos para os EUA porque a legislação norte-americana estabelecia índices de maturação fora do padrão tradicional francês. Como conseqüência, os EUA logo cederam e o queijo é exportado para lá preservou as condições estabelecidas pelos franceses, os quais, aliás, são também comercializados no Brasil. Eles se pautaram no fato de que o modo de produção do queijo é o que dá o seu sabor e consistência.
“Então, é necessário respeitar a tipologia também do queijo artesanal mineiro, caso contrário ele será extinto”, diz ele. Essa também é a opinião da ONG Sertãobras, precursora de um trabalho de acompanhamento dos produtores, revendedores e consumidores em Minas e em São Paulo. O objetivo é demonstrar cientificamente que não existem problemas sanitários no queijo artesanal. Essa proibição do leite não pasteurizado é uma simples imitação da legislação sanitária usada pelos Estados Unidos, que tradicionalmente não tem nenhum queijo feito com leite cru, enquanto que na Europa existem centenas deles.
O médico veterinário Leôncio Diamante ressalta que o comércio interestadual tem de ser certificado pelo SIF – Serviço de Inspeção Federal, e na lei estadual atual. “E esta tem algumas particularidades impossíveis de serem cumpridas pelo queijo artesanal. Além disso, o custo de instalação da queijaria de acordo com a legislação é impossível para o pequeno produtor, que não tem sequer linhas de créditos dos bancos oficiais”, diz. Diamante cita também a interferência no modo de fazer, numa tentativa de padronização entre produtores diferentes. “É impossível exigir que uma tradição de 300 anos agora seja confeccionada de modo diferente só para cumprir a legislação”, destaca.
Nesse aspecto também o vereador Marcelo Borjão, de Uberaba, alertou que se não houver uma mudança na legislação, levando em consideração os miniprodutores, que fazem entre dois e dez queijos por dia, Minas Gerais corre o risco de ver o mercado negro do queijo crescer. Diamante concorda com ele e salienta que o produto muitas vezes complementa de forma substancial a renda familiar. “Do jeito que estão as normas atuais, somente o atravessador poderá sair ganhando”, argumenta.
A Sertãobras e outras ONGs levantam a bandeira de que é necessário que se faça ecoar pela sociedade civil, nos vários escalões do governo, que o modo de fazer o queijo Minas Artesanal um patrimônio nacional. Por isso, defende a necessidade de se definir um estatuto especial para a produção agroalimentar artesanal, que não seja submetida a normas inviáveis para ela, como boa parte do que se enuncia no RIISPOA – Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal, atualmente em consulta pública.
1 Comentários
Ótimo texto.
Abordagem abrangente coloca vários pontos sob a visão legislativa, bem como as alternativas de solução para o impasse tradição x lei. Inclusive adicionando soluções correntes em outros lugares.
Um abraço!!