Leia o artigo escrito por Gabriel Donato Andrade sobre os desafios enfrentados pelo queijo de leite cru em Minas Gerais. O texto foi escrito em agosto 2008, após o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) declarar patrimônio imaterial o modo de preparo do queijo de leite cru no Serro, Serra da Canastra e na Serra do Salitre, mas se mantém atual. Gabriel Andrade alerta que somente torná-lo patrimônio imaterial não irá resolver as dificuldades enfrentadas pelo queijo de leite cru, que continua fora da mesa dos brasileiros que querem consumir o produto. Argumenta que as legislações, estadual e federal, divergem sobre várias pontos e, desse modo, o produto continua proibido de circular fora do município onde foi produzido. Uma versão mais concisa desse texto foi publicada originalmente no jornal Estado de Minas, em 27 de agosto de 2008.
Queijo só será patrimônio nacional à mesa dos brasileiros
por Gabriel Donato Andrade
O dia 15 de março passado (2008) entrará para a história como o dia do queijo minas artesanal. Os mineiros sempre souberam o valor patrimonial do seu queijo, mas só agora o Estado brasileiro dispôs-se a reconhecer que o que é de Minas é do Brasil. Mas de “patrimônio imaterial” (o modo de fazer o queijo) é necessário que ele se torne um patrimônio nacional na mesa dos brasileiros. E aí começam as dificuldades!
O sistema federativo brasileiro é bastante imperfeito e, por isso, as legislações estaduais e federal divergem sobre várias coisas, inclusive sobre o queijo artesanal de leite cru. A rigor, a legislação federal não reconhece a produção “artesanal” como distinta da industrial e suas exigências são severas demais para serem cumpridas pelo pequeno produtor. Já a legislação estadual (lei 14.185/02) estabelece um regime de exceção para o queijo artesanal, mas só de alcance estadual, de sorte que o patrimônio não alcança ser “nacional”. As legislações divergem em vários pontos: período de maturação; características microbiológicas; embalagem; transporte; comercialização, inclusive temperatura de comercialização, etc.
Um simples exemplo: enquanto a lei federal estabelece a comercialização do queijo resfriado e embalado, a lei estadual permite a comercialização resfriado, maturado, embalado e rotulado e também maturado, rotulado e à temperatura ambiente, sem ser embalado. Até 1952, o prazo mínimo exigido pelo governo federal era de 3 dias para maturação do queijo Minas frescal e de 10 dias para os outros tipos. Estes prazos foram alterados por portaria de 1996 para um mínimo de 60 dias, em temperatura superior a 5o C, para todos os queijos fabricados com leite cru. A quem o produtor deve seguir? Ao fiscal e burocrata estadual ou ao fiscal e burocrata federal? Enquanto isso, diria Drummond, o fiscal e burocrata municipal tira ouro do nariz…
O resultado da parafernália legal onde ninguém se entende, sendo o produtor a última prioridade das discussões, é um imenso universo de produção e consumo de queijo artesanal de Minas Gerais que percorre todo o país e ocupa as principais praças de forma totalmente ilegal e clandestina. De um assunto próprio da esfera da nutrição e saúde pública é empurrado para a esfera policial.
As estatísticas indicam a existência de 1,8 milhões de produtores brasileiros de leite, dos quais 600 mil comercializam sua produção, predominando os pequenos agricultores, com 88% produzindo menos de 50 litros por dia. Estima-se que em torno de 40% do total produzido seja comercializado no mercado informal, principalmente na forma de leite fluido e de queijos artesanais à base de leite cru.
A produção da indústria rural de queijos foi estimada pelo Censo Agropecuário 1995-1996 em 202,3 mil toneladas, das quais 163 mil comercializadas; Minas Gerais foi o primeiro Estado produtor com 72,6 mil toneladas produzidas e 60,8 mil vendidas, o que representa aproximadamente 1/3 do total nacional.
Estima o Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA) que existem 30 mil produtores caseiros de queijo no Estado, dos quais menos de 60 (0,5%) recebem selo de qualidade da produção. Por ai se vê como o “patrimônio nacional” é, ao mesmo tempo, ilegal, clandestino, perseguido, desestimulado. Tudo o que atravessa as fronteiras do estado de Minas Gerais não poderia fazê-lo pela falta de documentação sanitária, de sorte que tudo o que se vende na periferia da metrópole paulistana em nada se diferencia do comércio de bugigangas contrabandeadas do Oriente, exceto pelo maior risco à saúde.
É um escândalo que o patrimônio nacional precise se abrigar, para existir, à sombra do crime e da contravenção. É hora de legalizar o bom queijo artesanal de Minas Gerais e, para tanto, as autoridades estaduais e federais precisam se alinhar de modo a definir um só procedimento e registro para os produtores, ao mesmo tempo que oferecer mecanismos eficazes de orientação e financiamento para que o padrão higiênico e sanitário, do rebanho e do queijo, representem maiores garantias de segurança alimentar para o apreciador dos queijos Canastra, Serro, Araxá.
O queijo artesanal é, desde séculos, o único vínculo dos pequenos produtores mineiros com o mercado, garantindo-lhes uma pequena renda monetária. Os obstáculos crescentes à produção e comercialização de queijos artesanais – em nome de normas sanitárias já algumas desacreditadas – significa cortar este vínculo tênue do produtor com o mercado. Aquele que vive à margem de rodovias poderá, talvez, encontrar como comercializar seu leite, deixando de produzir queijos; o que mora mais distante, venderá sua fazendola e se mudará para a cidade. Assim, a política atual é de desestimulo à produção do queijo artesanal, desestímulo à fixação do homem no campo, favorecendo a expansão dos grandes laticínios que necessitam mais e mais captar leite.
O queijo é um uso nobre do leite. O Brasil é o quarto produtor do mundo, com uma taxa anual de crescimento de 2,84%. Mesmo assim, os brasileiros são consumidores de queijo da ordem de 2,4 quilos anuais per capitã ao passo que, na França , o cidadão consume em média 20,64 quilos anuais; nos EUA 14,22 quilos e na Alemanha 11,99 quilos. Um dos fatores essenciais a estimular o consumo é a variedade de queijos que esses países fazem.
Países como França, Itália, Espanha, Inglaterra, possuem dezenas de variedades de queijos, muitos deles elaborados a partir do leite cru de vaca, de cabra e de ovelha. Já países puritanos como os EUA proscrevem o leite cru e seus produtos. O Estado brasileiro não deveria imitar os EUA, e nem se colocar no lugar do consumidor, decidindo por ele. Bem informado sobre o leite cru e seus supostos riscos, o consumidor saberá decidir, sem precisar do escudo policialesco que o separa desse patrimônio nacional. Em vez desperdiçar energia em assuntos impertinentes, deveria se dedicar com afinco à saúde do rebanho brasileiro, erradicando de vez a brucelose e a tuberculose bovina que, teme, possa ser disseminada através do queijo artesanal.
Testes modernos mostram que após 21 dias de maturação o queijo já não apresenta este risco. Mas o Governo Federal insiste que ele mature 60 dias, como o escudo de sua proteção contra a ineficácia na promoção da saúde do rebanho brasileiro. É preciso libertar o patrimônio nacional desta armadilha burocrática!
Leia também a versão publicada no jornal Estado de Minas: