Gabriel Andrade, patrono da SerTãoBras, comemora hoje seu aniversário de 90 anos, os dez últimos dedicados à luta pela legalização do queijo de leite cru brasileiro.
Por Débora Pereira
Aos oitenta anos Gabriel pensou no que ainda tinha para fazer. “Por que não uma ong?” – sugeriu sua filha Li An. Ele conta que despertou para a causa do queijo em 2005, após visitar a cidade de São Roque de Minas, na Serra da Canastra.
“Fomos visitar um produtor de queijo, Sr. Gaspar, e perguntamos a ele por que aquele queijo não se podia encontrar em São Paulo. Então eu soube que era ilegal, que o queijo só poderia chegar a São Paulo de maneira clandestina”, conta Gabriel Andrade. “E que toda semana havia apreensões e destruição de queijos de produtores que tentavam enviar sua mercadoria para São Paulo”. Ali a ideia da SerTãoBras começou a ser maturada. “Isso é um fato que ninguém tem conhecimento, precisamos ajudar para não deixar perder essa tradição do queijo” ele disse assumindo a luta.
O sabor e o aroma dos queijos despertam a memória de Gabriel. Ele lembra do queijo que sua mãe fazia e ele comia fresco quando criança em Arcos. Mas, ao mudar para Belo Horizonte para estudar, o queijo já não chegava fresco. Gabriel se lembra das cestas em formatos de tubo, trançadas de junco, recheados de queijo, chegando na capital mineira, já curados, envoltos em uma camada de poeira por causa da viagem.
“Hoje em dia, depois do desenvolvimento das estradas, os queijos chegam mais frescos na capital” observa Gabriel “o ciclo para consumir um queijo, da sua fabricação até a mesa do consumidor pode ser de três a sete dias, o problema é que as regras sanitárias impedem que a gente tenha esse produto fresco na nossa mesa e, para resistir, nós consumimos os queijos clandestinos”.
“Diante de tanta discussão hoje em dia sobre ambientalismo, a criação de gado é a cadeia produtiva mais ‘atacada’ pela mídia e pelos ambientalistas. Pensando, então, em uma alternativa para a produção de carne e derivados do leite, eu aposto no gado GIR como o menos insustentável” ele se empolga “Em vez de investir em fiscais para perseguir o queijo, o governo deveria investir em um gado de qualidade para os produtores das regiões queijeiras” ele defende.
O elo com os produtores de queijo motivou Gabriel a publicar um artigo no jornal Estado de Minas em 2008, “Queijo só será patrimônio nacional à mesa dos brasileiros”, em agosto 2008, após o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) declarar patrimônio imaterial o modo de preparo do queijo de leite cru no Serro, Serra da Canastra e na Serra do Salitre. Gabriel alertou que somente torná-lo patrimônio imaterial não iria resolver as dificuldades enfrentadas pelo queijo de leite cru, que continua fora do cardápio dos brasileiros que querem consumir o produto:
“Países como França, Itália, Espanha, Inglaterra, possuem dezenas de variedades de queijos, muitos deles elaborados a partir do leite cru de vaca, de cabra e de ovelha. Já países puritanos como os EUA proscrevem o leite cru e seus produtos. O Estado brasileiro não deveria imitar os EUA, e nem se colocar no lugar do consumidor, decidindo por ele. Bem informado sobre o leite cru e seus supostos riscos, o consumidor saberá decidir, sem precisar do escudo policialesco que o separa desse patrimônio nacional. Em vez desperdiçar energia em assuntos impertinentes, deveria se dedicar com afinco à saúde do rebanho brasileiro, erradicando de vez a brucelose e a tuberculose bovina que, teme, possa ser disseminada através do queijo artesanal.” Gabriel – Jornal Estado de Minas Agosto 2008
Na SerTãoBras, Gabriel gostava de estar entre os jornalistas e colaboradores e acolheu a sede da ONG em sua casa entre 2009 e 2010.
A Sertãobras ajudou produzir o filme “O Mineiro e o Queijo” de Helvécio Ratton e fez uma festa junina de lançamento em sua casa em 2010, no aniversário de dois anos da SerTãoBras, com a presença de produtores, políticos simpatizantes do queijo e amigos. O documentário foi visto em rede nacional de cinema.
Em um evento do governo de Minas para valorizar produtos de origem, em 2012, Gabriel brincou de ser repórter e provocou os entrevistados :
“Como nós da SerTãoBras, juntamente com a Secretaria de Agricultura e o Sebrae, vamos salvar o queijo mineiro dessa legislação absurda?” Sem perder a oportunidade de ser ativista, alertou ao presidente do SEBRAE: “Nosso queijo tem um adversário muito poderoso, que é a grande indústria, o queijo incomoda a grande indústria porque dá liberdade ao pequeno produtor de ser um concorrente, em vez de ser um colono fiel do industrial. Então é um inimigo super poderoso que o queijo enfrenta, mas nós vamos lutar e vencer isso, porque a qualidade, a sua importância social é muito grande.”
Gabriel gosta de comparar a situação dos queijeiros com a situação dos escravos nos Estados Unidos e se inspira em Lincoln, presidente que dizia que seu país não podia viver eternamente “metade livre, metade escrava”.
“Pois há que se dizer que o Brasil não pode continuar favorecendo os mineiros no que se refere ao consumo do Queijo Canastra e de todo o Queijo Minas. O Canastra carrega o título de Patrimônio Nacional e deveria estar ao alcance de todos no país e não só em um estado” ele defende.
Quando jovem, Gabriel decidiu estudar inglês como auto-didata e comprou os discursos do presidente Lincoln para treinar o idioma. Seu preferido é o que defende um governo democrático “do povo, pelo povo e para o povo”. Gabriel gosta de comparar Lincoln ao Lula:
“Esse poder de carisma pode ser comparado ao do nosso presidente Lula. Com seus discursos, cheios de metáforas, ele consegue convencer milhares de pessoas, porque fala a linguagem do povo. Lula não publica escritos, como deixou Lincoln, mas fala muito bem de improviso. Fazendo ainda uma comparação mais ousada, e bem generalista, sobre pensadores que debatem a democracia desde a Grécia Antiga até os tempos modernos, Lula pode ser comparado a Sócrates, que não deixou nada escrito, e Lincoln a Platão, que deixou escritos que até hoje são lidos e traduzidos no mundo todo. Na Grécia, Sócrates desenvolveu seu pensamento junto ao povo, assim como Lula. Só que Lula vai ter um final bem mais feliz”, espera Gabriel.
Ele visitou a Canastra muitas vezes e subiu a serra dirigindo na estrada de terra que leva para a fazenda da Matinha, dos produtores Otinho e Eliane, a quem ele doou três vacas F1 em 2010, um cruzamento de Gir e holandesa que permite dar mais leite em ambientes rústicos.
Em 2013, Gabriel deu apoio à equipe do jornalista Will Studd, do programa Cheese Slices, especializado em queijos artesanais, que publicou a história do queijo Canastra em canais de TV em mais de trinta países.
No mesmo ano, incansável, Gabriel visitou o mineiro Antonio Andrade, ministro da Agricultura, para pedir mais uma vez a liberdade para o queijo:
“Nosso queijo é um produto muito bom” ele explicou para o ministro “tanto o fresco, como o meia cura ou o curado ganha dos queijos europeus, mas você vai em um restaurante em São Paulo, tem um queijo francês de leite cru e não pode ter o nosso, agora, com o senhor se interessando, nós podemos concorrer em igualdade com o francês”.
E não demorou. Em 2015, com apoio de Gabriel, o queijo Canastra de São Roque de Minas foi apresentado no concurso do Salon Mondial de Tours, capital da gastronomia francesa, e ganhou medalha de prata na categoria massa prensada não cozida, o que deu projeção internacional para a causa.
Mas a luta não pode parar. Em novembro de 2015, 13 toneladas de queijo de leite cru foram enterrados vivos na Serra da Canastra e a SerTãoBras publicou em primeira mão a foto do caminhão de queijos, que foi visualizada por mais de 2,5 milhões de pessoas em menos de uma semana e compartilhada mais de 23 mil vezes. “
Se a situação ainda não mudou, ao menos a população está mais consciente do que acontece no mundo dos queijos artesanais mineiros” se consola Gabriel.
Nos últimos anos da vida de Vera, um dos passeios preferidos de Gabriel era acompanhar a esposa no mercado central de Belo Horizonte, para comprar queijo, goiabada e cachaça.