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Luta pelo queijo de leite cru é fortalecida no sul do país

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Embora o sul do país tenha a tradição histórica em queijo de leite cru, como os queijos serrano e colonial, a região é conhecida por injustiças contra os produtores pelos órgãos fiscalizadores. Mas isso não desanima os ativistas pela produção de queijo de leite cru. A vontade de avançar nas políticas públicas e sanitárias para o queijo estão motivando o diálogo e a persistência na produção artesanal, como mostra a entrevista abaixo com Michelle Carvalho, Bacharel em Ciência e Tecnologia de Laticínios.

Por Débora Pereira

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Defesa de Mestrado – Luciana Fariña (orientadora de mestrado) e Michelle Carvalho

Michelle trabalha há mais de 13 anos como consultora de indústrias de laticínios em Santa Catarina. Desde 2009 passou a se interessar pelos queijos artesanais de leite cru após realizar treinamentos com pequenos produtores em Santa Catarina. Lá, percebeu as dificuldades e limitações enfrentadas, se interessou pelo assunto e fez buscas sobre legislações e pesquisas científicas. Passou a ser integrante do Grupo de Trabalho Queijos Artesanais Slow Food Brasil desde 2012, onde mergulha especificamente no tema legislação. O Slow Food é um movimento internacional em defesa dos alimentos de qualidade com produção sustentável.

Em conjunto com produtores, também membros do Slow Food, Michelle escolheu o queijo artesanal do município de Seara, Santa Catarina, como sujeito da sua pesquisa de mestrado em Desenvolvimento Rural Sustentável. Ela defendeu em setembro de 2015 na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Confira na entrevista sobre seu percurso e sua pesquisa.


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Quais as principais dificuldades enfrentadas pelos produtores de queijo artesanal  observadas em sua pesquisa?

Os produtores querem muito continuar produzindo o queijo de leite cru conforme aprenderam com seus antepassados, mas enxergam a legislação atual como um obstáculo para a manutenção desta atividade. Para se formalizarem e obterem um registro de inspeção estadual, por exemplo, eles necessitam pasteurizar o leite, o que já descaracteriza o queijo e, junto com outras exigências, inviabilizam a produção. Eles são obrigados a ter uma queijaria com exigências estruturais semelhantes a das grandes indústrias, têm custos mensais com responsável técnico, análises do leite, água e queijos, exames de saúde dos animais, além dos custos com taxas e impostos. Um produtor pequeno não tem condições financeiras de arcar com todas essas despesas, ele acaba permanecendo na informalidade, correndo o risco de ter seus queijos apreendidos e destinados a aterros sanitários como vimos frequentemente acontecer. A partir do nosso contato inicial, apesar das pressões exercidas por outros órgãos reguladores dentro do Estado, pôde-se observar uma disposição da fiscalização municipal de Seara (SC) em autorizar a fabricação de queijo com leite cru dos produtores atendidos pela prefeitura, observando-se a legislação vigente (IN 30 / 2013). Apesar desse avanço, a comercialização destes produtores fica limitada ao município.

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Produtores de queijo colonial artesanal de leite cru de SC. Foto: Remy Simão

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Como se passou a sua interação com a comunidade de produtores? Qual são as reações do produtores diante da apreensões?Minha pesquisa foi intermediada por um produtor membro do Slow Food e contou com o importante apoio de pesquisadores e extensionistas da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (EPAGRI). Durante o trabalho notava uma certa desconfiança ao chegar em algumas propriedades, fruto provavelmente do medo de serem denunciados.

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Queijo colonial

Da mesma forma era notória a preocupação deles nas informações que me passavam. Uma produtora relatou que estava participando do projeto de pesquisa para que eu pudesse ajudá-la a produzir seus queijos de forma tranqüila e que o marido dela pudesse parar de trabalhar fora e juntos viverem apenas da produção de queijo, que era seu sonho. Eles têm muito medo. Quando ocorrem as ações, os fiscais vão escoltados pela polícia, isso já assusta. Uma das produtoras que visitei disse que ficou muito atemorizada quando a fiscal do município foi até sua residência acompanhada de um policial para informar que a partir daquela data ela não poderia mais produzir e comercializar queijo de leite cru. Eles têm medo de sair com os queijos para vender e serem parados em uma blitz. Em alguns casos pedem para os clientes buscarem em suas propriedades para não correrem riscos e em outros entregam às escondidas nas casas dos clientes.

Paisagens do Sul


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Qual o panorama nacional das legislações atuais para o produtor de queijo artesanal de leite cru?

A legislação brasileira permitia a produção de queijo a partir de leite cru somente com maturação superior a 60 dias. Porém, em 2012 foi publicada a Instrução Normativa 57/2012 pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) que autorizou a fabricação de queijos com leite cru com tempo de maturação inferior a 60 dias, desde que alguns pré-requisitos fossem atendidos. Essa normativa não atendeu os produtores de queijo de leite cru, então em 2013, ela foi aperfeiçoada, revogada e substituída pela Instrução Normativa nº 30 (IN 30/2013). Porém, essa IN em vigor é ignorada em muitos Estados e muitos produtores não a conhecem. Recentemente foi publicado o Decreto 8.471/2015 e a Instrução Normativa 16 / 2015 que regulamenta este decreto. A IN 16 foi comemorada pelos produtores de queijo artesanal porque ela realmente atendia suas necessidades no que se refere às exigências do estabelecimento, assim como algumas normas ficaram mais claras para o pequeno produtor.

Porém, foi possível observar a manifestação contrária à IN 16/2015 por diversos fiscais responsáveis pela fiscalização em Santa Catarina, informaram aos produtores de queijo de leite cru que essa legislação não iria prosperar e, atualmente, ela não é aplicada na inspeção estadual.

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Reunião MDA (Brasília): Diva (APACO/SC), Luciano (Canastra/MG) e Michelle (Slow Food)

Após a publicação da IN 16/2015 foi colocada em discussão a legislação das diferentes cadeias de produtos de origem animal, começando pelo leite, e essas discussões não foram nada participativas. O MAPA não convidou e nem permitiu a participação dos produtores ou seus representantes nas reuniões.

Em nota de repúdio,  entidades de todo o país se reuniram para reivindicar seus direitos de participação nessas discussões. Foi então que o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) convocou a participação de diversas representações da sociedade civil para construção de uma proposta única a ser encaminhada para o MAPA. Apesar da ampla participação na construção desta proposta única para legislação de leite e derivados, representantes de pequenos produtores temem que essa legislação atenda apenas os produtores de médio e grande porte, fazendo com que os pequenos produtores ainda permaneçam na informalidade em virtude do excesso de exigências e carência de políticas públicas para esses produtores com menores recursos financeiros.

É importante deixar claro que os riscos presentes nas indústrias não podem ser trazidos para o produto artesanal e a recíproca tb é verdadeira. São processos produtivos diferentes que devem ser tratados diferentes também.


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Em poucas palavras, quais os riscos alegados pelos agentes fiscais para os consumidores de queijo de leite cru?

Principalmente brucelose e tuberculose, doenças transmissíveis pelo leite. Por outro lado, é um dever do Estado promover uma política efetiva para o controle dessas e outras zoonoses. Pela própria definição, estabelecida pelo RIISPOA, uma legislação de 1952:

“entende-se por leite, sem outra especificação, o produto oriundo da ordenha completa, ininterrupta, em condições de higiene, de vacas sadias, bem alimentadas e descansadas”.

Vacas sadias são vacas sem brucelose e sem tuberculose, independente do leite ser pasteurizado ou não. Não seria mais eficaz o Estado adotar uma postura mais construtiva efetivando políticas públicas funcionais para o combate e prevenção dessas e outras doenças? Quem está pagando por essa omissão do Estado são os produtores de queijo de leite cru e os consumidores que estão sendo privados de um produto com forte apelo cultural e alternativo aos produtos industrializados. Países europeus são livres de doenças como brucelose e tuberculose.


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E sobre os riscos de contaminação microbiológica?
Há esse risco tanto em queijos de leite cru como nos pasteurizados, mas diversos trabalhos científicos apontaram como solução deste problema a aplicação de Boas Práticas de Ordenha e Fabricação, sem as quais não há alimento seguro. Há também pesquisas que comprovaram o efeito da maturação na redução da contagem de microrganismos potencialmente patogênicos. Tudo vai depender do processo tecnológico utilizado para a fabricação do queijo.

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Prensa de madeira cedrinho utilizada para produção de queijo colonial artesanal de leite cru. Foto: Remy Simão

Existem queijos, por exemplo, que não são maturados, então deve haver um estudo específico para aquele tipo de queijo para verificar sua adequação à legislação quanto aos parâmetros microbiológicos. Os estudos devem avaliar cada tecnologia de fabricação individualmente, desta forma, a legislação aplicada para um tipo de queijo não pode ser a mesma a ser aplicada em outro queijo com tecnologia diferente. O queijo de leite cru tem uma vantagem sobre o queijo feito de leite pasteurizado, em virtude da flora bacteriana natural do leite permanecer presente no queijo, essa flora acaba inibindo o desenvolvimento de alguns microrganismos potencialmente patogênicos, agindo como “protetores” do queijo.

Em minha pesquisa, por exemplo, em nenhum dos queijos foi detectada a presença de Listeria monocytogenes e Salmonella que são microrganismos potencialmente causadores de doenças mais graves, resultado que se mostrou semelhante às demais pesquisas realizadas com produtores de queijo artesanal de outros Estados. Os microrganismos encontrados foram Coliformes Termotolerantes e Staphylococcus aureus, que podem ter sua contagem reduzida com a aplicação de Boas Práticas ou até mesmo com o auxílio do processo de maturação. O que ocorre hoje é que os produtores não têm amparo técnico para adequar seus produtos às legislações vigentes.

Nos órgãos públicos de extensão rural do Estado de Santa Catarina, por exemplo, obtive a informação de que, em regra geral, as assistências técnicas em projetos são voltadas para orientar os produtores a pasteurizar o leite para transformá-lo em queijo, senão estes produtores não terão como comercializar seus produtos, já que a legislação do Estado não irá permitir a formalização desta atividade com o uso do leite cru.

LogoImagem118x50Como os produtores de queijo de leite cru irão conseguir se adequar às normas e atender os padrões microbiológicos, se sequer recebem apoio técnico das instituições públicas?

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Treinamento em Controle de Fabricação de Queijos realizado em Chapecó / SC para produtores de Queijo Colonial, todos pasteurizados devido a legislação aplicada. Foto: Michelle Carvalho


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Qual foi o seu maior objetivo com a sua dissertação?
Meu objetivo foi tentar mostrar a realidade da produção artesanal de queijo de leite cru no município de Seara, que se assemelha às demais regiões do Estado. Muitos extensionistas de SC que leram minha dissertação afirmaram parecer estar lendo um relato de sua região de trabalho tamanha a similaridade. Tentei utilizar uma linguagem simples e clara para que todos que trabalham nesta área compreendessem as dificuldades existentes e onde é preciso avançar. Com a ajuda de minha orientadora Luciana Fariña, também defensora do queijo artesanal de leite cru, conseguimos expor a problemática vivenciada pelos produtores para que os órgãos responsáveis saibam onde atacar e solucionar os problemas existentes.


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Quais os desafios para o queijo artesanal de leite cru no Estado de Santa Catarina?
Através do Slow Food, permanecemos em defesa dos queijos de leite cru, buscando apoio de instituições públicas e privadas, dando voz aos pequenos produtores que são marginalizados pelo rigor da legislação existente. Através da pesquisa, continuamos buscando soluções para a produção artesanal, mesmo com todas as dificuldades de obtenção de recursos para a realização destes trabalhos. Os pesquisadores engajados ou simpatizantes à causa acabam ajudando uns aos outros, como a importante colaboração recebida em minha dissertação por Clovis Dorigon, pesquisador da EPAGRI de Chapecó (SC) que atua há tempos em torno dos produtos artesanais e o recente apoio do professor pesquisador Juliano De Dea Lindner da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Com perseverança vamos conseguindo atingir os objetivos, já estivemos mais longe de conseguir. O importante é seguir sempre em frente em defesa destes alimentos abarcando a filosofia do Slow Food para o bom, limpo e justo. Bom por ser um alimento de qualidade, limpo por respeitar os animais e o meio ambiente com práticas sustentáveis de produção e justo por remunerar adequadamente os produtores rurais que os fabricam.

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