Por Fernando Carvalho de Almeida, engenheiro químico que lida com alimentos e bebidas… E chef de cozinha!
A filosofia de um Produto Agroalimentar Artesanal é estabelecer relações locais de consumo. É democratizar, valorizar, promover a dignidade, a consciência e a responsabilidade social e ambiental.
A venda regulamentada de produtos agroalimentares artesanais precisa vencer alguns obstáculos para se tornar realidade, e um dos primeiros é responder a pergunta: o que é, afinal, um produto alimentício artesanal? Essa indagação é essencial para se definir uma legislação regulatória. Por não se tratar de um termo regulamentado, seu uso, hoje, é livre e não tem nenhum tipo de proteção. Nenhuma legislação brasileira contempla a definição do que vem a ser um alimento artesanal.
A UNESCO define produto artesanal como sendo “produtos que são produzidos por artesãos, tanto de forma completamente manual quanto com ajuda de ferramentas manuais ou mesmo mecânicas, desde que mantida a contribuição manual direta do artesão como a mais significativa para o resultado final do produto…A natureza especial dos produtos artesanais deriva de suas características distintivas, que podem ser utilitárias, estéticas, artísticas, criativas, culturalmente anexadas, decorativas, funcionais, tradicionais, religiosas e socialmente simbólicas e significativas.”
O Merriam-Webster Dictionary define “artesanal” e “artesão” da seguinte forma:
– Artesanal: “produzido em quantidades limitadas por um artesão através do uso de métodos tradicionais.”
– Artesão: “aquele que produz algo (como queijo ou vinho) em quantidades limitadas, muitas vezes empregando métodos tradicionais.”
Na verdade, toda definição de artesanal que buscarmos acabará por trazer alguns pontos comuns fundamentais, que são a valorização do conhecimento do artesão, a necessidade da prevalência deste savoir-faire no resultado final do produto e a escala de produção limitada. Também não é raro encontrarmos limitações quanto a origem da matéria-prima, especialmente quando falamos de alimentos. Nesta busca para definir o alimento realmente artesanal do O The Hartman Group (https://www.hartman-group.com) propõe três perguntas básicas para se fazer:
O produto é feito com cuidado por uma pessoa de verdade?
É feito manualmente, em pequenos lotes ou quantidades limitadas usando ingredientes especiais?
Ele reflete perícia, tradição, paixão, um processo?
Percebem que somente conhecendo o produtor somos capazes de responder a estas perguntas? Qualquer conceito de artesanal que busquemos deve levar a isso: conhecer o produtor, saber da origem de seus ingredientes e insumos, admirar a singularidade de sua técnica.
Indústria empobrece relação cultural com alimentos
Hoje a maior parte das pessoas vivem em cidades e sua relação com o alimento é, não raro, muito empobrecida. Compra-se algo sem se conectar com sua história ou origem. Ingere-se algo muitas vezes apenas para se nutrir, quase como uma obrigação fisiológica que deve ser atendida. A produção industrial e distribuição em larga escala de alimentos é uma realidade e não nos cabe aqui discutir se podemos ou não prescindir dela na nossa atual organização social e produtiva.
Mas seria justo impor este modelo industrial como único possível? Creio que a resposta é um retumbante não! Reconectar as pessoas a todo processo produtivo significa valorizar o esforço e o conhecimento do pequeno produtor rural e de inúmeros artesãos que transformam ingredientes em comida, aumentando a renda no campo. É trazer transparência para o consumidor, dar a ele a oportunidade de escolha, promovendo o consumo consciente. É aproximar produtor e consumidor por meio da transparência e do compartilhamento de valores.
E no mundo?
A mesma situação pode ser encontrada mundo afora, já que este movimento em busca de maior aproximação dos produtores e do hábito de “consumir local” é um fenômeno global. Mercados como o norte-americano e o europeu também não possuem uma legislação definidora do conceito de artesanal. Também lá existe neste momento o debate sobre o uso do termo e sua regulamentação. No caso europeu existem as denominações de origem que, em certa medida, protegem métodos e saberes tradicionais e estabelecem normas rígidas de controle geográfico e de processo. Mas mesmo estas normas são se detêm na análise da caracterização do “artesanal”. Não é difícil encontrar no mercado mundial produtos produzidos em larga escala sendo chamados de artesanais.
O comer do Homo sapiens
Não é necessário ser um pesquisador para perceber a íntima e indissolúvel relação entre meio ambiente, ser humano e alimento. O processo evolutivo que culminou com o aparecimento do Homo sapiens foi permeado de cabo a rabo por sua interação com o meio que o cercava e as fontes de alimento de que dispunha. As pressões ambientais e nutricionais foram primordiais neste caminho. Nossa espécie é fruto direto da sua capacidade de se organizar em grandes grupos, de se comunicar dentro destes grupos e juntos lidar com o abstrato. Basta observar isso para compreender o quão profunda é nossa relação com o comer.
Quero aqui chamar a atenção do leitor para um ponto: usei de forma proposital a palavra comer. Poderia ter usado “se alimentar” mas preferi “comer”. Isso porque comer, para nós humanos, é muito mais que se alimentar, do que disponibilizar ao seu organismo nutrientes e calorias. Comer é carregado de prazer, de história, de comunidade, de viver. O comer transcende a mesa e alcança o campo, conta uma epopeia que se inicia com uma semente nas mãos de um agricultor, passa pelo labor cuidadoso ao lado do fogão e termina na conversa gostosa à mesa. Porque é isso que nossa evolução nos ensina! Foi entendendo a natureza e seus caprichos que nos tornamos agricultores. Domesticamos plantas e animais, aprendemos a produzir pão e vinho usando microrganismos que sequer sabíamos existir. Transformamos o leite perecível e valioso em queijo capaz de sustentar a vida nos momento de escassez.
Nosso comer durante milhares de anos envolveu a proximidade e a natural limitação das possibilidades de produção. Era impossível vencer grandes distâncias e contornar certos aspectos dos ciclos naturais, tais como secas e estações do ano. Estar envolvido com a natureza e saber decifrar seus sinais era uma questão de vida ou morte, assim como estar próximo das fontes de alimento. Nós somos frutos desta disciplina, intimamente ligados a toda esta cadeia. Ainda assim esta relação pode soar estranha aos ouvidos do Homo sapiens contemporâneo.
A urbanização, acelerada pela industrialização, a logística moderna e a revolução da automação e da eletrônica nos levaram à sociedade informatizada e global, nos afastando definitivamente do campo e alterando nossa relação com o alimento.
Links úteis
_ http://www.artisanfoodlaw.co.uk/blog/traditional-foods/what-does-it-mean-to-be-an-%E2%80%98artisan%E2%80%99-food-producer
_ https://www.dairyfoods.com/blogs/14-dairy-foods-blog/post/88605-the-true-meaning-of-artisanal-dairy-foods
_ http://uis.unesco.org/en/glossary-term/craft-or-artisanal-products
_ https://cuesa.org/article/artisanal-defined https://www.merriam-webster.com/dictionary/artisan
_ https://cultureby.com/2006/11/the_artisanal_m.html https://www.hartman-group.com/hartbeat/410/when-the-label-says-artisan-