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Produtores de queijo pedem revisão das leis sanitárias brasileiras

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Há 30 mil propriedades que fabricam queijo artesanal em Minas Gerais. Trabalho rende uma produção média de 300 mil peças por dia

Do Globo Rural
Enquanto aguardam por revisão, produtores movimentam comércio clandestino (Foto: Globo.com)

Enquanto aguardam revisões da lei, produtores movimentam comércio clandestino em todo o país (Foto: Globo.com)

No Brasil, há um abismo entre a lei e a realidade das fazendas que produzem queijo. Em Minas Gerais, terra onde mais se faz o produto de forma artesanal no país, os produtores pedem uma revisão das regras, que provocam prejuízos e permanente insegurança.

O Mercado Central de Belo Horizonte, em Minas Gerais, talvez seja a principal vitrine de queijo artesanal do Brasil. A estimativa é de que são comercializados no lugar cerca de cem toneladas do produto por mês, com mais de três mil peças por dia e mais de 300 queijos vendidos a cada hora.

O jeito de fazer o queijo artesanal é ancestral, com leite cru de vaca. Já no preparo industrial é usado leite pasteurizado. Em Minas, esse queijo tem mais de 300 anos de história. Além do valor nutritivo, de ter alimentado várias gerações de brasileiros e do valor econômico, social e cultural, este queijo é oficialmente um patrimônio nacional.

Em maio de 2012, seguindo decisão anterior do estado, o IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, do Ministério da Cultura, declarou como tombado o modo de fazer do queijo minas artesanal. Esse é o reconhecimento de um saber de grande valor, como dizem, imaterial, inestimável. O estado de Minas Gerais tem 30 mil propriedades fabricando queijo, o que rende uma produção média de 300 mil peças por dia.

Não há dados oficiais, mas estimativas confiáveis mostram que não chega a 1% da produção o volume de queijo artesanal de leite cru comercializado legalmente no Brasil. No entanto, diariamente milhares de toneladas vão para o mercado.

O homem citado nesta reportagem e que transporta o queijo será identificado com o nome fictício de José para preservá-lo de complicações. Ele não faz algo desonroso. Ao contrário, orgulha-se de exercer a atividade centenária de queijeiro, pessoa que compra o queijo nos grotões mais profundos para vender na cidade grande.

Na região de Minas por onde passou a equipe de reportagem há mais de cem queijeiros como seu José. Além da produção própria, ele sai de propriedade em propriedade recolhendo a mercadoria que foi feita durante a semana. O seu José, que compra queijos principalmente de parentes e vizinhos, segue de queijaria em queijaria, pega as peças, acomoda nas caixas e pesa.

O trabalho do seu José se dá numa rotina tensa porque 99% do queijo artesanal não se enquadram nas normas impostas pelas autoridades sanitárias para os derivados de leite cru. Portanto, seu José está no ramo do comércio clandestino. Como estratégia, ele não viaja de dia. Quando a lua desponta ele deixa a roça para encarar uma longa viagem noturna.

Uma das cargas de queijo, que será levada para São Paulo, percorrerá 600 quilômetros que daria uma viagem de oito horas se o percurso pudesse ser feita pelas rodovias principais. Mas, para escapar da fiscalização, o roteiro dos queijeiros obriga uma série de desvios.

Por vezes, rodando em trechos de asfalto; ora em trechos de terra, cortando fazendas; ora estendendo o caminho por áreas urbanas, seu José segue como se percorresse labirintos. Ele pode ser pego pela Polícia Rodoviária, pela Receita Estadual ou pela Vigilância de Produtos Comestíveis. Ele diz que em 20 anos nessa lida já foi pego diversas vezes, mas não para porque tem a atividade como missão para ajudar as famílias lá de onde mora que ficariam sem alternativa para vender o queijo.

A sorte naquele dia favoreceu seu José que no roteiro em ziguezague consegue contornar todas as barreiras e chegar incólume ao destino. Depois de mais de dez horas de viagem, o queijeiro de Minas Gerais faz em São Paulo a primeira entrega. Ele rebate o frio da madrugada paulistana carregando uma caixa de queijo nas costas. Essa primeira entrega é meio no atacado. Ele deixa 30 peças na portaria de um predinho perto da estação. Quando amanhece o dia, ele parte para o varejo. Em São Paulo ele também corre o risco de ser pego pela fiscalização. Por isso, a venda não pode ser às claras, no meio da rua.

O seu José salga a boca da freguesia com provas do queijinho e oferece também outras delícias como doces, embutidos, manteiga e requeijão. A banca improvisada, que tem até freezer, é uma festa para quem gosta de produtos da roça e ainda oferece comodidade na hora do pagamento. O seu José tem maquininha para cartão. A venda é um sucesso. No prazo de dois dias, o seu José liquida o estoque e já pode voltar para Minas Gerais. Na outra semana retoma a vida de clandestino.

Na mesma situação do seu José, há centenas e centenas de queijeiros levando mercadorias para São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Brasília, movimentando uma economia subterrânea que se esconde no vão entre aquilo que a sociedade realiza e o que a sociedade idealiza. Essa distância vai da Esplanada onde as normas são feitas até as profundezas onde estão localizadas as casinhas de queijo.

A fazendinha no pé da Serra da Canastra, no município de São Roque de Minas, é propriedade do casal Hilda e Moisés Gonçalves. Ela trabalha na queijaria e ele fica com a lida do gado. Para funcionar considerando os aspectos ambientais, fundiários, contábeis, trabalhistas e sanitários, uma propriedade familiar queijeira deve seguir mais de 300 exigências. A resolução federal de nº 7, de novembro de 2000, do Ministério da Agricultura, estabelece normas para as queijarias de Minas Gerais. Uma das 169 recomendações que o proprietário tem de seguir determina que no estábulo quem tirar o leite só deve exercer a função de ordenhador, cabendo ao outros as tarefas de lida como higienização e limpeza.

No rosário de normas há uma recomendação para que o tirador de leite use avental. O Moisés Gonçalves experimentar fazer o trabalho usando a peça. O avental arrasta no chão quando ele se senta, fica amarrotado no meio das pernas, atrapalha segurar o balde e parece mais um estorvo. Há uma série de disparidades entre o mundo das normas e o mundo dos fatos.

A visita à propriedade de Moisés Gonçalves foi feita em companhia dos veterinários Carlos Castro, fiscal federal do Ministério da Agricultura, e de Johne de Castro, da ONG francesa Agrifert. Na ocasião, os veterinários faziam levantamento para conseguir o selo de identificação geográfica do queijo, o que, posteriormente, foi alcançado. Constatou-se que as queijarias não tinham, como requer o protocolo, paredes de azulejo nem cômodo de maturação. O queijo foi provado e não sobrou nenhuma queixa para a degustação.

O emaranhado de regras e normas dá margem a muitas interpretações. Uma delas, sobre comercialização, consagrou-se para o queijo artesanal. O produto inspecionado pelo munícipio só pode ser vendido no município. Ao queijo inspecionado pelos órgãos do estado só é permitida a venda dentro dos limites do estado. Para ser vendido em todo território nacional o queijo precisa passar pelo Serviço de Inspeção Federal, o que limita o comércio do queijo.

Enquanto pedem por revisão das leis para que possam exercer legalmente sua atividade, os produtores movimentam um comércio clandestino do queijo, que chega até a mesa dos consumidores em diversos cantos do país. Um comércio subterrâneo que revela a disparidade entre os mundos das normas e o mundo dos fatos.

Programa Globo Rural, da Rede Globo, exibido no dia 9 de Setembro de 2012

Veja também a segunda parte da reportagem:

Queijarias têm desafio de manter produção artesanal dentro das regras

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