Produto considerado patrimônio nacional não pode ser vendido fora de MG. Queijo inspecionado pelo estado se restringe ao estado
Do Globo Rural
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O pequeno produtor de queijo vive um desafio de manter a tradição do queijo artesanal sem desrespeitar as regras sanitárias de produção. Os produtores em Minas Gerais não entendem como um produto oficialmente considerado patrimônio nacional não pode ser vendido fora do estado por causa das tramas da legislação.
O produtor de queijo artesanal José Baltazar da Silva, mais conhecido como seu Zé Mário, conta com a ajuda do filho Eudes na propriedade na Serra da Canastra, perto de Araxá. O produtor João Magno Pimenta tem a filha Priscila como ajudante na propriedade em Serro, perto de Diamantina. Os dois passaram a adotar as chamadas Boas Práticas de Produção, instituídas pelo IMA, o Instituto Mineiro Agropecuário, que criou toda uma regulamentação para os derivados do leite.
Agora, João Magno e Zé Mário trabalham com ordenhadeira mecânica. Eles lavam o úbere das vacas, enxugam com papel toalha e fazem o teste de mamite. Eles reformaram todas as instalações. O curral está dividido em um cômodo de lida, outro para guardar ração e outro para armazenar medicamentos. O piso, que era de terra batida, foi concretado. Atualmente, tudo fica limpinho. O equipamento é lavado com bucha e sabão. Não resta sujeira no chão e a água, embora seja de dentro dos próprios sítios, é filtrada e clorada.
Todo cuidado no curral não é significante diante do rigor a ser tomado na queijaria. Terminada a ordenha, Eudes e Zé Mário não podem entrar na sala de fabricação do queijo. Do lado de fora há um coletor e um funil por onde o leite é enviado para a parte de dentro da queijaria. O produtor João Magno também tem um sistema para abastecer direto a queijaria.
Nas duas propriedades, quem põe a mão na massa para fazer o queijo são as mulheres. No Serro, o trabalho é realizado pela dona Maria, que é casada com João. Na Canastra, a fabricação fica por conta da dona Valdete, esposa do Zé Mário, que usa jaleco, avental, bota, gorro, luva e máscara. O recinto tem uma pia para higienizar os utensílios e outra só para lavar os queijos. Tem entrada de ar, tela à prova de mosquito e câmara especial para a maturação do produto.
João Magno manda os queijos para maturar na Cooperativa dos Produtores do Serro, que tem um criterioso serviço de recepção, lavagem e armazenagem do produto. O queijo fica em câmaras frias e sai embalado, mostrando no invólucro até o número da propriedade em que foi feito para eventual rastreamento.
No entanto, o consumidor que está fora de Minas Gerais não pode comprar o queijo de Zé Mário nem de João Magno. O impedimento é consequência da legislação que estabelece que o produto inspecionado pelo município só pode ser comercializado no município. O produto inspecionado pelo estado se restringe ao estado. Assim, quando o produto de Zé Mário, por exemplo, que por três vezes ganhou o concurso de melhor queijo de Minas Gerais, passar pela divisa do estado é considerado impróprio para o consumo.
Em 1952, quando foi feito o primeiro regulamento, a referência não foi o sistema europeu, baseado no leite cru para a produção, mas no modelo americano, que determina a pasteurização do leite para as grandes indústrias. Em um resumo, pode-se dizer que durante décadas prevaleceu para o campo a regulamentação industrial. Até que em dezembro de 2011, o Ministério da Agricultura baixou a Instrução Normativa nº 57, anunciada pelo próprio governo federal como uma “regra que atende à antiga solicitação dos produtores artesanais de queijo”.
A nova medida mexe basicamente com o período de maturação, que é o tempo que o queijo leva para que as bactérias do bem se sobreponham aos micro-organismos maléficos do leite cru. Com a maturação, o queijo alcança a inocuidade, como gostam de falar os técnicos, ou seja, pode comer que não faz mal. O período de maturação já foi de dez dias, mas nos anos 90, para internalizar regras do Mercosul, passou para os 60 dias. “Esse período de 60 dias é inviável porque o queijo em 60 não daria nem para ralar”, diz Carlos Dumont, presidente da Cooperativa do Serro.
Os produtores alegam que de dez a 15 dias, conforme a região, o queijo já pode ser consumido. Esse é o “meia cura”. Mas para baixar dos 60 dias a Instrução estabeleceu condicionantes. A primeira delas é que o setor produtivo apresente “estudos técnico-científicos comprovando que a redução do tempo de maturação não compromete a qualidade.” Carlos Dumont diz que essa prova científica está fora do alcance do produtor. “Não tem dinheiro. Você coloca uma proposição, mas cadê o dinheiro para as universidades trabalharem em cima desse produto e achar a solução”.
A Instrução Normativa 57 estabelece também que a produção de queijo de leite cru fica restrita a queijarias situadas em regiões que tenham o Selo de Identificação Geográfica, excluindo, portanto, todas as outras regiões e que a propriedade seja certificada oficialmente como livre de brucelose e tuberculose. Ainda determina que o produtor mande fazer análise mensal do leite em laboratórios oficiais da rede RBQL, Rede Brasileira de Qualidade do Leite. Há apenas dois locais em Minas Gerais: em Belo Horizonte e em Juiz de Fora.
O produtor Moisés Gonçalves pede que se imagine como ele irá mandar essas amostras para um laboratório que está a quase 500 quilômetros de distância de sua propriedade. “Mandar através de quem? Quem leva? Como eu vou levar? O custo de eu levar é caro. Então, no momento não tem condição”, diz.
O presidente da Cooperativa de São Roque de Minas, João Leite, recuperou uma receita do tempo em que a Canastra mandava queijo para a Corte, no Rio de Janeiro, e está fazendo o Canastra Real, apreciado por entendidos e comparado a queijos suíços de leite cru, que, aliás, são vendidos livremente nas capitais brasileiras. João Leite afirma que, ao tentar consertar, a instrução normativa está é inviabilizando a produção. “Antes dela nós podíamos produzir e não comercializar. Agora, ela autoriza a comercialização, mas dificulta tanto a produção que inviabiliza a produção. Então, comercializar o quê se não conseguimos nem produzir”, diz.
Em Brasília, no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, a resposta às reclamações dos produtores de queijo foi que “não é porque o produtor é pequeno e artesanal que não tenha que cumprir regras”. O autor da frase é o veterinário Luiz Carlos Oliveira, diretor do DIPOA – Departamento de Inspeção dos Produtos de Origem Animal. “Nós não podemos descumprir o que a Constituição determina, que é a garantia de inocuidade no âmbito de competência do Ministério da Agricultura. A lei é nacional. Nenhum alimento pode ser dado ao consumo sem a prévia fiscalização. Essa é uma lei que respeita um princípio constitucional de segurança do consumidor”, diz.
No entanto, em Minas Gerais, o IMA, Instituto Mineiro Agropecuário, nas pessoas dos veterinários Altino Rodrigues Melo, diretor-geral, e Pedro Artung, ex-diretor-técnico, propõe que a Instrução Normativa 57 seja revogada e adequada à produção artesanal de queijo.
“A legislação que está aí é muito complexa. Ela precisa ser adequada à realidade deles e não o contrário. O que se espera das leis é que elas se prestem a regulamentar fatos sociais pré-existentes. Não se pode por força de lei pretender-se criar um fato social”, diz. Pedro Artung.
“Existe um processo burocrático que dificulta para o nosso pequeno produtor que mora na propriedade rural e às vezes não tem nem energia de cumprir todos os protocolos legais, desnecessários nesse caso. E isso é um entrave hoje”, diz Altino Rodrigues Melo.
Para o diretor do DIPOA, a solução não é baixar o rigor, mas fazer funcionar o recém-regulamentado SISBI, o Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal. Os municípios e os estados devem montar laboratórios com padrão de excelência para que possam ser aprovados pelo Ministério da Agricultura. O governo federal daria reconhecimento de equivalência a esses laboratórios. Então, o queijo inspecionado localmente poderia ser vendido nacionalmente.
“Se o município tiver uma produção artesanal, mas tiver um serviço de inspeção implantado, o ministério pode reconhecer e ele pode sair da clandestinidade. Então, cabe mais uma organização político-sócio-econômico de cada comunidade, de cada município e do estado”, diz Luiz Carlos Oliveira.
Essa linha de pensamento conflita com a realidade dos municípios onde se dá produção de queijo artesanal. Conta-se nos dedos de uma única mão aqueles capazes de montar laboratório do tipo que o SISB exige. Um alento, porém, parece vir do Secretário de Defesa Animal, Ênio Rodrigues. “É possível uma revisão das regras. Acho que tudo caminha para isso”, diz.
O secretário reconhece que as regras, historicamente voltadas para a indústria, precisam contemplar mais a produção artesanal. O órgão estuda como fazem os países europeus que têm tradição no assunto.
Programa Globo Rural, da Rede Globo, exibido no dia 9 de Setembro de 2012
Veja também a primeira parte da reportagem:
Produtores de queijo pedem revisão das leis sanitárias brasileiras