Clério Silva, fiscal federal agropecuário, viajou no intercâmbio Minas/França em novembro de 2009 para conhecer a cadeia produtiva do queijo de leite cru naquele país. O queijo Minas artesanal, como os da região do Serro, de Araxá e da Serra da Canastra em Minas Gerais, são objeto de polêmica porque o leite não pasteurizado favorece a formação de micro-organismos. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde há uma cultura da pasteurização e esterilização dos alimentos, esses queijos não são bem vistos. Por outro lado, os fermentos utilizados para a coagulação dão sabor especial aos queijos e a longa maturação impede a formação de colônias de bactérias. Na França sua produção é uma tradição respeitada.
Silva contou detalhes interessantes. Por exemplo, na França, a alimentação das vacas é o pasto da região onde é feito o queijo: flores e plantas típicas que variam de lugar para lugar. Isso influencia diretamente no sabor do queijo. Se forem utilizados grãos, como milho e soja, seu uso é moderado e não são permitidos transgênicos.
A comitiva brasileira visitou as regiões de Besançon, nordeste da França, local de produção do queijo Comte, e a região de Bayonne e Pau, ao sul da França, aos pés da cordilheira dos Pirineus, onde é feito o queijo Ossau-Iraty, de leite de ovelhas.
Outra curiosidade é que os rebanhos não são grandes, cada produtor tem em média 50 cabeças de gado. Cada animal tem obrigação de utilizar um brinco numerado (desde seu nascimento) e, dentro de um sistema de controle e rastreamento, o produtor deve informar (pelo preenchimento de fichas padronizadas) quais remédios aplicou no animal, sua alimentação e quantidade de leite produzida. As fichas são auditadas pelos fiscais do serviço veterinário, que visitam regularmente cada fazenda sem nenhum custo adicional para o fazendeiro.
Clério Silva recebeu a repórter Débora Pereira da Sertãobras em seu gabinete no Serviço de Inspeção de Produtos Agropecuários – SIPAG, no qual é responsável pelo setor de leite, mel e derivados.
Sertãobras – Qual foi a utilidade do intercâmbio Minas/França 2009 para o desenvolvimento de políticas públicas do queijo de leite cru no Brasil?
Clério Silva – Em primeiro lugar, é muito útil poder comparar nosso sistema de produção de queijo com o sistema francês. Eu pude constatar que estamos no mesmo caminho de regulamentação dos produtos de leite cru pelo qual passou a França. Por ser um país de forte tradição queijeira, a França precisou se organizar para ter sua produção aceita após a criação da União Européia, preenchendo uma série de requisitos de maturação, segurança alimentar e procedimentos sanitários.
No Brasil nós estamos neste caminho, para a regulamentação. É notável que os produtores franceses têm muitos subsídios para adequarem sua produção a estas normas. Na verdade, eles não teriam como arcar com as modificações a curto prazo se não fosse o subsídio governamental fornecido pela UE e pelo governo francês.
Mas, se por um lado o governo financiou as instalações, houve uma contrapartida dos produtores na especialização da mão de obra. As linhas de crédito rural na Europa exigem cursos de habilitação no setor agropecuário, condições fito-sanitárias ideais e pagamento de uma parte dos valores. Segundo pude constatar, o crédito varia de caso pra caso, não existe um valor instituído para auxílio.
Outra diferença entre os dois sistemas é que na França cada boi é numerado e registrado. Aqui ainda não, o sistema de identificação para a cadeia do leite é por rebanhos. Existe o Sisbov – Serviço Brasileiro de Rastreabilidade da Cadeia Produtiva de Bovinos e Bubalinos, mas é usado na prática somente por produtores de gado de corte para abastecer abatedoutors que fazem comércio internacional.
Sertãobras – Como foi feito o planejamento da viagem e quem custeou as despesas? Quem selecionou os produtores participantes?
Clério Silva – Os custos foram pagos pela Embaixada Francesa, pela Ferti, ONG francesa que apóia o desenvolvimento das cadeias do queijo de leite cru, e pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA. O MAPA concedeu autorização para minha viagem.
Os selecionados foram os presidentes de associações e os produtores mais ativos, além de dois veterinários e uma especialista em políticas públicas e gestão governamental do MDA.
Sertãobras – Para os produtores e veterinários, quais os conhecimentos mais importantes aprendidos no intercâmbio?
Clério Silva –Primeiramente, fazer amigos e contatos dentro das cadeias de produção e regulamentação do queijo, o que de certa forma ajuda a estabelecer uma rede mundial de apoio ao queijo de leite cru.
Em segundo lugar, foi bom comparar as fazendas brasileiras e francesas. Como lá as propriedades são pequenas, todo espaço é utilizado com plantação de hortaliças, abatedouro de aves e turismo rural, a produção de queijo é somente mais uma das atividades da propriedade, embora muitas vezes seja a principal. Geralmente a mão de obra é do proprietário e de sua família. Em uma fazenda de leite na região da cidade de Pau, havia somente uma senhora para fazer todo o serviço.
Isso foi muito bom para os produtores brasileiros compreenderem que, muitas vezes, não adianta ficar esperando todos aderirem a uma associação para então só assim participarem. A participação varia muito, e se uns forem depender da adesão de outros, o movimento de organização da cadeia do queijo nunca vai acontecer. A iniciativa isolada de 7 a 10 pessoas pode fazer uma grande diferença.
Sertãobras – Vocês perceberam muitas diferenças entre as regiões visitadas?
Clério Silva – Sim, cada região tem as suas peculiaridades de clima e isso está diretamente relacionado ao reconhecimento do produto. Por exemplo, cada região possui seu caderno de normas do queijo diferente, que determina a alimentação do gado, o tempo de maturação, o tipo de coagulação. Este conjunto de valores relativo a um determinado queijo é chamado de ‘indicação geográfica’ ou ‘denominação de origem’. Para tanto, um grupo de pessoas se mobiliza para reconhecer e qualificar o produto típico da sua região. No Brasil, temos potencialmente duas regiões em Minas Gerais, da Serra da Canastra e do Serro, onde os produtores podem se organizar e definir suas denominações de origem.
Sertãobras – Existe alguma perspectiva de o governo brasileiro dar mais subsídios ao queijo da Serra da Canastra?
Clério Silva – Realmente precisamos reconhecer que há uma grande diferença daqui pra lá nesse sentido, pois na França os produtores são mais organizados e o governo ajuda bastante. Mas no Brasil já existem linhas de créditos para este fim no Banco do Brasil, através do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf e da Emater.
Sertãobras – Como está o funcionamento dos entrepostos e qual a sua produção em média?
Clério Silva – Na região da Serra da Canastra existem seis entrepostos, que são locais de maturação e certificação do queijo, para que possam ser vendidos em outros estados do Brasil. Todos são de iniciativas particulares. Existe mais um na região do Serro que será vistoriado em breve, para então começar a funcionar.
No entanto, embora não existam dados confiáveis, sabemos que grande parte da produção ainda é clandestina, podemos calcular que os queijos de seis entrepostos não representam nem 5% da produção total.
Sertãobras – Existe algum estabelecimento que vende legalmente queijo de leite cru fora de Minas Gerais?
Clério Silva – Praticamente toda a produção dos entrepostos é vendida em São Paulo.
Sertãobras – O que é feito com os produtos apreendidos?
Clério Silva – A produção ilegal apreendida é incinerada. A fiscalização e vigilância aumentaram bastante, pois os produtores que participam dos entrepostos ajudam a denunciar produções clandestinas. Se isso não for feito, a concorrência é desleal.
Sertãobras – Existe fiscalização em empresas, como fábricas de pão de queijo, a fim de saber a procedência do queijo?
Clério Silva – Todas as empresas de produtos alimentícios precisam se reportar à vigilância sanitária e comprovar a procedência dos seus ingredientes.
Sertãobras – O que o governo espera do terceiro setor para a realização de melhores políticas públicas para o queijo?
Clério Silva – Eu conheço somente duas ONGs brasileiras que se preocupam com este assunto. Uma é a Agrifert, que desde 2005 se mobiliza para ajudar e defender os produtores, através do trabalho da coordenadora de projetos Lilian Haas. A segunda é a Sertãobras, que publica informações úteis em seu site e desenvolve pesquisas neste sentido.
Mas o que eu espero do terceiro setor é ajuda na conscientização dos produtores para sua melhor organização e infra-estrutura. A princípio, a posição do SIPAG de defender a certificação e o cumprimento das normas do queijo pode parecer burocrata. Mas, a médio e longo prazo, sabemos que isso beneficiará principalmente os consumidores, pois só no Brasil existe um grande mercado a ser explorado.
Na França, por exemplo, a produção é totalmente controlada para que não haja oferta em demasia nem falta no mercado, os sistemas de previsão da produção garantem o escoamento e controlam a mercadoria por placas de caseína coladas no queijo.
Outra iniciativa que pode partir das ONGs, e quem sabe da Sertãobras, é a promoção de concursos de queijo entre os produtores, para valorizar os produtos. Nós participamos de um na cidade de Ogeu Les Bains, promovido pela Associação dos Produtores de Queijo da Montanha e foi realmente muito divertido.