Leia a reportagem de Luiz Pitombo sobre a produção e o consumo de queijos de leite cru na França. Um mercado que envolve cerca de 22 mil produtores e movimenta R$ 5,8 bilhões por ano. A matéria revela as etapas da cadeia produtiva, detalha a produção em números e valores, além de revelar as especificidades de alguns dos melhores queijos do mundo.
Na França, queijos com história e qualidade
Por LUIZ H. PITOMBO, publicado na revista Balde Branco, de dezembro de 2008.
Em 2007, saíram das formas européias 6,8 milhões de toneladas de queijosOs franceses gostam de citar, com orgulho, que possuem um tipo de queijo diferente para cada dia do ano. Mas o fato é que, por motivos culturais e históricos, esta indústria se desenvolveu muito no país, ganhou força e se projetou internacionalmente. O consumo e a degustação do produto é um hábito arraigado, e é, por assim dizer, até ritualizado, ao lado dos seus vinhos, não menos famosos. Eles são apreciados não só ao natural, mas também na formulação de inúmeros pratos.
Um impulso determinante para a expansão do setor ocorreu através da Política Agrícola Comum da União Européia (UE), iniciada entre 1960/1970, com a meta de tornar o bloco econômico autossuficiente na obtenção de alimentos. Atualmente, a região é a maior produtora e consumidora mundial de queijos, estimando-se que em 2007 saíram das formas européias 6,8 milhões de t de queijos, absorvendo perto de um terço de todo o leite que produzem. O consumo per capita ficou em 18,7 kg, superior em 3% sobre 2006.
É neste contexto que a França se destaca como o segundo maior produtor, ficando atrás somente da Alemanha. Considerando unicamente os queijos não fundidos à base de leite de vaca, que são os de maior volume produzido, foram obtidos no país 1,75 milhão de t em 2007, contra 1,99 milhão da Alemanha. Somando-se todos os tipos de queijos (fundidos e os não fundidos), o volume produzido no ano passado na França chegou a 1,85 milhão de t. Por habitante, o consumo é de 25,2 kg/ano, só superado pela Grécia, com 26,4 kg.
Sua exportação, a segunda em volume dentro da UE, porém a primeira em faturamento, atingiu em 2007 um total de 602 mil t, com crescimento de 3,5% sobre o ano anterior, sendo 86% dirigidos aos países do bloco. Quanto ao faturamento, este ficou em R$ 7 bilhões (1 euro = R$ 2,91), superior em 4,8% ao de 2006, com 81% oriundos de seus vizinhos. Dentre os principais clientes, estão: Alemanha, Bélgica/Luxemburgo, Reino Unido e Espanha. Fora do bloco, se destacam as compras de Estados Unidos, Japão, Rússia, Suíça e Líbia. Na soma das vendas externas dos principais dos produtos lácteos voltados ao consumidor final, os queijos responderam por 72% da receita em 2007.
Os queijos de leite de ovelhas e cabras, de maior valor no mercado, não têm seus volumes de produção precisamente conhecidos na Europa por não estarem envolvidos, por exemplo, no contexto das cotas de produção de leite, que afeta apenas o produto bovino. De qualquer forma, as quantidades são relativamente pequenas, atingindo, em 2006 na França, 88 mil t dos provenientes de cabras, e 59 mil t, dos de ovelhas. Além da França, igualmente possuem boa produção de leite de cabra: Espanha, Grécia e Países Baixos. Entretanto, a maior parte do volume desta última região é adquirida e processada pela França.
O país detém uma expressiva variedade do produto, vários deles, com certificado de origem, faturando alto na exportação devido ao padrão de qualidade desenvolvido há tempos
RECEITAS EXIGEM LEITE CRU – No início, a produção dos queijos franceses ocorreu associada à utilização de terras de pastagem e para o desenvolvimento econômico destas áreas. Mas em função da maior disponibilidade de pastos em determinadas regiões, a indústria do queijo aí floresceu com maior intensidade. As principais áreas especializadas em sua produção estão hoje nas montanhas ou em suas proximidades, como Ródano-Alpes, Auvérnia e Jura, além de outras com produção expressiva de leite bovino, como a Bretanha.
Caroline Samson, da divisão de Estudos e Prospecção do Escritório da Pecuária (Office de L’Elevage), entidade estatal de pesquisa, explica que, em geral, os queijos franceses possuem um custo de produção mais alto, pois são muito elaborados e contam com várias especificações, tais como o tipo de alimentação dispensada às vacas. Ela diz que não chega a haver uma competição no país entre os queijos de cabra, ovino e bovino, uma vez que o consumo está associado ao hábitos e a compras espontâneas.
As grandes empresas do país processam principalmente queijos industriais, como o Emmental e a Mussarela, a partir de leite pasteurizado para comercialização dentro e fora da Europa. As pequenas indústrias e pecuaristas têm um enfoque mais regional ou nacional. Estes últimos, segundo informa Caroline, realizam suas vendas diretas ao consumidor na fazenda, para supermercados e outros compradores de fora da região.
O leite cru é utilizado na elaboração de vários queijos tradicionais, visando manter seu paladar e suas características, de acordo com os seus defensores, o que motiva debates envolvendo questões sanitárias. Recentemente, foi noticiado que a poderosa Lactalis, sediada na Normandia, suspendeu a fabricação de queijos com leite sem pasteurizar devido a preocupações sanitárias e restrições de mercado por parte de grandes importadores, como os Estados Unidos.
Com o fim das cotas de leite na UE, prevista para 2015, Caroline acredita que possivelmente os produtores e empresas de queijos de menor porte, com venda direta, não sofram tanto, pois avalia que o volume produzido já está ajustado ao que se consegue comercializar, e a cota não é fator limitante. Mesmo assim, há outras pessoas que falam da necessidade de estes receberem subsídios.
Um trabalho importante para garantir nichos de mercado e a sobrevivência destes produtores é a certificação de origem dos queijos tradicionais. O sistema francês (AOC) começou nas primeiras décadas de 1900, e mais recentemente surgiu o da UE (PDO), criado em 1992 . Dos cerca de 150 produtos lácteos com o selo PDO, 46 são franceses, o maior número dentre todos os demais países. O segundo lugar é da Itália, com 34 produtos; e empatados com 20, estão Espanha e Grécia. Existem manteigas e cremes franceses certificados, mas os queijos são, disparados, os primeiros da lista, predominando os de origem bovina, com 28; vindo depois os de cabra, com 12, e os ovinos, com dois.
Em 2006, a produção destes queijos foi de 198 mil t, com o Comté, das regiões de Franco-Condado e Alsácia- Lorena, respondendo por 23% deste total. O tipo Cantal, também de origem bovina, produzido na região da Auvérnia, e o Reblocon, de Savoy, ficaram com 8% cada. Já o Roquefort, de leite ovino, das regiões da Aquitânea e do Médio Pirineu, ficou com 9%. Estão envolvidos cerca de 22 mil produtores, entre os que elaboram e maturam seus próprios queijos, cooperativas, indústrias privadas e empresas especializadas na maturação. Estima-se que este empreendimento movimente R$ 5,8 bilhões.
MAIOR LUCRO COM QUEIJO NA FAZENDA – Na região da Auvérnia, ao Sul de Paris, capital da França, está localizado o departamento de Puy-de-Dôme. Foi nesse local que a família Tartiere adquiriu uma propriedade, em 1979, inicialmente, dedicada à criação de ovinos. Desta atividade, migraram para a produção de leite bovino e em 2003 introduziram a fabricação de queijos. “Fizemos isso para obter uma renda maior”, afirma Marie Tartiere. Ela, em conjunto com o marido e a cunhada, toca a propriedade que está com 90 vacas em lactação. Também possuem dois funcionários fixos, um para a lida com o gado e outro na queijaria, este com salário mensal de R$ 3.500.
O tipo de queijo produzido é o Saint- Nectaire, associado a esta região desde o século XVII, e que possui certificado de origem garantido com o selo da União Européia. Sua área de produção é limitada unicamente à montanhosa região de vulcões extintos de Puy-de-Dôme e do vizinho Cantal. A técnica tradicional para sua elaboração foi aprendida pela cunhada com outros fazendeiros da região e é respeitada à risca. É um queijo semiduro produzido com leite cru (também é aceito o pasteurizado), que passa por um processo de maturação que o recobre com uma fina camada de bolor natural, característico do local.
A queijaria da propriedade foi montada contígua à sala de ordenha e é ligada a ela por uma tubulação. O motivo, como explica Marie, é que pelo processo de fabricação ancestral adotado, o queijo precisa começar a ser elaborado logo após a ordenha, com sua temperatura sendo mantida rigorosamente entre 32 e 33°C até que o coalho se forme. A massa é posteriormente acomodada em formas provisórias e prensada para fazer a drenagem parcial do soro, com a temperatura ficando agora em 20°C.
Já com o tamanho e a forma definitiva, os queijos descansam por uma semana. Nesse momento, parte do produto é comercializado para terceiros, que também recolhem o produto de outros fazendeiros e cuidam da maturação em grande escala. A outra parte fica na fazenda, onde o processo é realizado em uma caverna entre rochas, que existe perto da propriedade, ou em uma estrutura ao lado da sede, que foi adaptada para isso. Sem luz, com temperatura e umidade controladas, os queijos ficam nesse local por um período de 5 a 8 semanas, durante o qual são tratados com salmoura.
Além de abastecerem a pequena e simpática loja de queijos que montaram na própria fazenda, comercializam o produto maturado em feiras e para outras lojas. Para gozarem de descanso no domingo, o leite do dia é resfriado e, depois, comercializado. Na propriedade, para produzir 1 kg de queijo, são utilizados entre 7,5 a 8 kg de leite. Cada queijo pesa em torno de 1,6 kg, sendo que o produto maturado na fazenda é comercializado a R$ 22,70/kg, e o não maturado, a R$ 15/kg. Na região, o leite está cotado este ano em R$ 0,9920/kg e Marie se diz satisfeita com os resultados.
O rebanho da propriedade é composto, em sua maioria, de vacas da raça Holandesa de seleção nacional, chamada de Prim’Holstein. Embora existam raças francesas cujo leite é cobiçado por suas boas qualidades para a elaboração de queijos (Montbeliarde, Normanda, e outros), Marie afirma que optaram por manter a raça que criavam por mera conveniência. “O leite da Prim’Holstein também se presta para a elaboração dos queijos” afirma. Mas lembra que conseguia melhores resultados quando fornecia silagem de milho, o que precisou deixar de fazer. Isso porque o volumoso não é tradicional da região e ela precisa seguir uma série de normas, além de pesar o custo do transporte.
Recentemente, começaram a introduzir algumas vacas Jersey para aumentar o teor de sólidos no leite utilizado. Porém, não avançam para cruzamentos e mantêm a raça pura. Ela confessa que desconhecia a possibilidade deste cruzamento e não sabe dos seus resultados. A média de produção do rebanho é de 8.000 kg de leite por lactação. Para o repasse da inseminação são empregados dois touros, um Prim’Holstein e outro Limousin.
O uso desta última raça é para valorizar os animais jovens, que vende com duas semanas de vida para a produção de carne. As vacas ficam semiestabuladas no verão, alimentando-se de pasto e concentrado, e, no inverno, como cai neve na região, o confinamento é total e recebem silagem de capim, feno e concentrado. Na Auvérnia, outros tipos de queijos de leite bovino também possuem certificado de origem reconhecido pela União Européia, como o Fourme d’Ambert, Cantal, Bleu d’Auvergne e Salers).
ORIGEM E QUALIDADE – Com a globalização dos mercados, se intensifica pelo mundo afora o interesse e a necessidade de se estabelecer certificação de origem para os mais variados produtos alimentícios. Coisas boas se copiam, mas nada melhor do que o original. Por outro lado, quem criou e desenvolveu certo produto quer manter seu mercado e preservar as tradições.
Na França, uma primeira referência em texto legal tratando deste assunto em queijos surgiu no século XVII, com o Roquefort. Nele inspirado, começou a se esboçar, no princípio do século XX, o atual sistema adotado no país, que é identificado pelo selo AOC (Appellation d’Origine Contrôlée).
Este considera critérios como: a procedência do leite, que deve ser de uma área geográfica restrita e fixa, onde também deverá ser realizada sua produção e pelo menos parte da maturação; a produção, que precisa seguir padrões ancestrais estabelecidos e supervisionados por uma comissão do AOC. O sistema francês foi posteriormente referendado pela União Européia, que criou o seu selo em 1992, o PDO (Protected Designation of Origin, em inglês).
Existem oito regiões francesas reconhecidas pelo PDO para queijos de leite bovino, que são a maioria, que se seguem abaixo com seus respectivos produtos:
Auvérnia: Saint-Nectaire, Fourme d’Ambert, Bleu d’Auvergne, Salers e Cantal. Este último é tido como um dos queijos mais antigos que se conhece, com o historiador romano Plínio, o Velho, já fazendo referência a sua existência no século I d.C. É um queijo sujeito a duas prensagens e a três períodos distintos de maturação, conforme o gosto: entre um a dois meses, de três a seis meses, e mais de oito meses.
Champanha/Burgúndia: Epoisses, Chaource e Langres. Queijo com formato peculiar, o Langres é maturado por duas a três semanas. Durante esse período, ele não é revirado nenhuma vez propositalmente, criando uma área côncava em seu topo, com pelo menos 5 mm de profundidade. Algumas gotas de champanha neste local aumentam o prazer em degustá-lo.
Franco-Condado/Alsácia-Lorena: Comté, Bleu de Gex Haut-Jura, Mont d’Dor, Morbier e Munster. Os dois primeiros queijos desta região são produzidos com leite de vacas das raças Montbeliarde e Simental. O segundo foi introduzido na região por monges, no século XIV, e ganhou reputação já naquela época.
Normandia: Pont l’Evêque, Livarot, Neutchâtel e Camembert. A região do mais famoso queijo do país conta a história que ele foi inventado durante a Revolução Francesa por uma fazendeira, Marie Harel, que vivia no lugarejo que lhe emprestou o nome, Camembert. Pouco mais de cem anos depois, ele já era embalado em caixinhas redondas de madeira.
Savoy: Reblochon, Beaufort, Abondance e Tome des Bauges. O primeiro queijo é produzido somente com leite cru de vacas das raças Montbeliarde, Abondance e Tarine. Nessa região montanhosa, os animais se alimentam de pastos no verão, e de feno, no inverno.
Nordeste (Thiérache-Brie): Maroilles, Brie de Meaux e Brie de Melun. Região que abriga o considerado Rei dos Queijos do Norte da França, o Maroilles. Ele começou a ser elaborado por monges, no século X, na abadia do mesmo nome. Seu período de maturação varia de três a cinco semanas.
Sudeste (Ródano-Alpes): Fourme de Montbrison e Bleu du Vercors- Sassenage. Este é o único queijo de fazenda francês que adota o seguinte procedimento em sua elaboração: o leite da ordenha da tarde é fervido e resfriado; no dia seguinte, o leite cru da primeira ordenha, ainda morno, é a ele misturado numa proporção de 30% a 50%. O leite cru incrementa a fermentação.
Sudoeste (Aquitânea-Médio Pirineu): Laguiole e Bleu dês Causses. O primeiro queijo, que pode pesar de 25 kg até 50 kg, é produzido desde o século XII. Quase desapareceu, mas graças ao esforço de uma cooperativa local, voltou a ser elaborado. No início, era fruto do trabalho de dedicados monges que buscavam preservar o leite obtido no verão usando o queijo no outono e inverno, quando o serviam a peregrinos que transitavam pelos caminhos de Santiago de Compostela.
Fontes: “Prenez la route dês fromages d’appellation d’origine” e “The protected designation of origin cheeses”, Office d’Elevage.
https://media.sertaobras.org.br/08/link/revistabaldebranco.pdf
1 Comentários
Excelentrs os textods ref. queijos franceses.