Artigo do Jornal O Globo.
Documentário em cartaz no Rio mostra como lei impede que versão artesanal do produto seja vendida fora de Minas
Artur Xexéo
Para manter uma tradição de quase 300 anos, cerca de 30 mil famílias mineiras vivem de uma atividade ilegal: a produção e a comercialização de queijo de Minas artesanal. Foi o que descobriu o cineasta (também mineiro) Helvécio Ratton quando resolveu fazer um documentário sobre quem são as pessoas que fabricam um produto que já ganhou a chancela de patrimônio cultural do país. Ao conhecer os problemas dos pequenos produtores rurais mineiros, acabou realizando um filme sobre uma atividade ameaçada de extinção.
Ratton não acredita que o filme, que estreou na semana passada em sete cidades do país, mude essa situação. Mas acha que pode provocar uma discussão atrasada em quase 60 anos. — Filmes não mudam nada. Mas podem estimular as pessoas a tomarem uma atitude. A Assembleia Legislativa de Minas Gerais marcou uma audiência pública e discutirá o assunto na terça-feira. E já está se armando uma sessão na Câmara em Brasília — admite o cineasta.
A produção do queijo artesanal foi proibida pelo decreto 30.691, assinado por Getúlio Vargas em 1952, e ainda está em vigor.
De acordo com ele, “para entrar no mercado, os produtos de leite e derivados devem passar por um processo de pasteurização e receber o carimbo do Serviço de Inspeção Federal”. O que diferencia o queijo artesanal é o fato de ele ser feito do leite cru, não pasteurizado. A lei não pegou.
Tanto que, no Mercado Central de Belo Horizonte, são comercializadas 180 toneladas por mês de queijos artesanais. Algumas leis mineiras e portarias do Ministério da Agricultura legitimaram a feitura do queijo a partir do leite cru. Nem por isso a produção artesanal está salva.
Filme abre debate sobre excesso de intervenção pública
Exigências do governo alteram característica do Minas tradicional
“Há um excesso de intervenção pública”, diz, no filme, o sociólogo Carlos Alberto Dória, colaborador da organização não governamental Sertãobrás, que trabalha pela legalização do queijo de leite cru. Neste “excesso” estão incluídos o tempo de maturação de 60 dias, quando os produtores mineiros maturam em 12 dias, no máximo 21; a construção de queijarias obedecendo normas de higienização que chegam a custar R$ 30 mil; e a proibição da circulação do queijo artesanal fora de Minas.
A determinação de restringir a comercialização do queijo dentro dos limites mineiros resulta numa situação única. Enquanto o Roquefort, importado da França, pode ser encontrado em qualquer supermercado da Zona Sul carioca, o Minas artesanal não está disponível no Rio, embora seja feito com as mesmas técnicas do produto estrangeiro.
Para ser comercializado, o governo exige que o queijo seja maturado por 60 dias, tempo necessário para eliminar os “micro-organismos perigosos”, naturais de um produto feito com leite cru. Tanto tempo maturando, segundo os produtores, faz o queijo mudar de sabor, perder maciez e desagradar ao mercado.
Em Minas, uma lei permite maturação de 21 dias. “Eles adotaram a legislação de outros países”, protesta, no filme, Célia Lucia Ferreira, pesquisadora da Universidade Federal de Viçosa. “Nós somos um país tropical. Tudo aqui ocorre mais rapidamente. Nós não precisamos de 60 dias de maturação, não.”
Custos exigidos são inviáveis para produtores
“A legislação tem que se adequar a esse produto”, conclui o produtor identificado no filme apenas como Joãozinho, enquanto mostra uma peça do queijo Minas artesanal. “E não esse produto se adequar à legislação feita em gabinete”.
O custo de uma queijaria nos moldes exigidos pelas autoridades também é inviável para a maioria dos produtores. “A arte de fazer queijo é do produtor”, diz, no filme, o técnico Elmer Almeida, da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural. “Nós ensinamos as boas práticas”. Elas incluem lavar a mão, usar máscara, touca e luvas, o controle sanitário do rebanho, a análise da água, uma mesa de alumínio para repousar o queijo enquanto é curado… as mesmas normas para a indústria.
A pequena margem de lucro após os gastos para se obedecer à legislação já fez com que fazendeiros trocassem a produção de queijo pela venda de leite para as fábricas que o pasteurizam.
Os produtores riem do temor que as autoridades têm de que o queijo de leite cru provoque doenças. Ou, como resume o produtor Luciano, da Serra da Canastra: “Assim como o cigarro faz mal, o cara vai decidir lá se ele quer comer aqueles estafilococos a mais ou não.”
“O mineiro e o queijo” está em cartaz num único cinema do Rio, o Arteplex.
(Artur Xexéo)