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Queijo e terroir: mito ou realidade?

A comparação do ‘efeito terroir’ em vinhos e queijos levanta a discussão sobre como a tecnologia cada vez mais substitui as características locais  na fabricação de queijos. O texto mostra a sutil contradição da influência dos complexos elementos naturais/ambientais que dão peculiaridade a cada queijo francês, inclusive apontando as limitações das pesquisas. Hoje,  as condições que levavam à biodiversidade do terroir podem ser substituidas por fatores tecnológicos, o que o autor descreve com riqueza de detalhes. No Brasil, essa discussão sobre a força do terroir nos produtos locais está apenas começando e ainda existem muitos estudos para serem feitos a fim de se delimitarem as características que podem dar identidade a um ‘terroir’ .

Por Arnaud Sperat-Czar, tradução de Débora Pereira

Se confiarmos no boom midiático do termo terroir nos últimos tempos, já é fato: ele, enquanto território, se expressa completamente nos queijos. Degustar um camembert é engolir um pedaço da Normandia, saborear um roquefort é voar pelos planaltos de Aveyron, provar um venacais é sentir o odor da Córsega… Fazer um paralelo com os vinhos, onde o terroir tem mais força, não justifica o exagero com que se fala de terroir para os queijos atualmente. Se a videira tem suas raízes na terra, o queijo vem da teta das vacas. As uvas esmagadas resultam no vinho, mas o pasto contribui simplesmente para encher o estômago das vacas, estabelecendo uma relação muito indireta com o queijo. O que resta do gosto do pasto no leite após esta transformação estomacal?

  • O terroir tem gosto?

Vamos esquecer imediatamente as falácias de que o queijo provençal libera o aroma de pastos secos, ou que o gosto amargo de genciana seria mantido no queijo do Cantal… Estes aromas são sutis demais para sobreviver à digestão! Somente sabores muito acentuados podem ser sentidos no leite e, nesses casos, são geralmente defeitos, como o amargo da silagem de alimentos muito fermentados, como o repolho ou beterraba … Ou talvez o alho selvagem presente em alguns campos do Cotentin, que deixa um rastro agradável no camembert. Se os produtores de vinho podem identificar a uva e o território relacionando aromas primários, o queijo não tem tanta sorte.

Apesar disso, por que os produtores de queijo encontram frequentemente diferenças dependendo da origem do leite? “O leite é um reflexo da terra”, explicou Pierre Le Bouc, ex-diretor da agroindustrial Lanquetot. “O Pays d’Auge é como um Borgonha, Bessin, um Bordeaux “, afirmou.

“Estudos feitos sobre os queijos saint-nectaire e abundance destacam as implicações sensoriais da composição botânica de pastagens”, explica Jean-Baptiste Coulon, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisa Agrícola (INRA), em Theix.

Assim, nos Alpes do Norte, nas produções do queijo abundance, onde as pastagens costumam ter características diferentes em cada lado da montanha, com espécies de flores e gramas específicas, quer dizer que cada lado vai produzir um queijo particular? “As diferenças mais importantes dizem respeito a textura do queijo”, afirma o estudo. “Os queijos do norte são em geral menos firmes, mais cremosos, mais pastosos e sua granularidade é mais fina, mais de fusão. Em termos de sabor, eles são geralmente mais ‘encorpados’ (…). Em contraste, os queijos do sul são em geral mais suaves”. E conclui que “há um efeito da natureza das pastagens nas características sensoriais dos queijos”.

“As diferenças são pequenas”, admite Jean-Baptiste Coulon. Mas, mesmo assim, insistem em afirmar um certo significativo “efeito terroir” sobre os produtos.

Como explicar isso? Para continuar a comparação com o vinho, os odores dos queijos são aromas essencialmente secundários e terciários, isto é, relacionados com a degradação dos componentes do produto. Isto dá lugar ao conceito de terroir:

“Se é difícil para as moléculas aromáticas presentes nos pastos serem encontradas nos queijos em quantidades suficientes para serem percebidas, por outro lado, outros tipos de moléculas podem ser responsáveis por uma destruição mais intensa de proteínas (proteólise), influenciando diretamente a textura e sabor do queijo”, afirma Coulon.

Os aromas do queijo surgem principalmente devido à degradação da matéria prima, das proteínas e gorduras, em particular, que se transformam em moléculas menores e mais voláteis. O sabor e os aromas não são obtidos imediatamente, eles se desenvolvem pacientemente e não param de evoluir. O comté, por exemplo, pode desenvolver gostos amanteigados a partir de aromas de nozes frescas ou torradas.

  • A raça do gado afeta o gosto do queijo

 Qualquer fator local, afetando a composição do leite, pode levar a uma tipicidade do produto. A raça do animal, inclusive. Normanda, Salers, Aubrac, Vosgienne… foi-se o tempo em que cada região tinha a sua própria raça de gado, particularmente bem adaptada ao solo local, graças à seleção natural das espécies: animais pequenos e rústicos nas montanha, mais produtivos nas planícies…

“Os cruzamentos remontam há pelo menos um século e meio”, diz Laurent Avon, do Instituto de Pecuária. “A corrida para a produtividade que ocorreu após a guerra – pois era preciso acabar com a escassez de alimentos – acentuou o movimento de melhoramento genético e se sacrificaram as vacas menos eficientes”, afirma.

Hoje, a Holandesa, com seu couro branco com grandes manchas pretas, conquistou uma grande parte da França, a ponto de fazer par com as vacas Normandas, na Normandia. Razão: ela pode produzir até 9.000 litros de leite por ano. Na França, apenas três raças fornecem 90% de toda produção de leite: a Normanda, a Montbéliarde e a Holandesa.

Vaca Holandesa

Mas, de uma raça para a outra, a composição do leite é diferente. Assim, um estudo sobre o queijo beaufort insiste na importância do uso da raça Tarentaise (que contribui para 65% da produção de beaufort), cujo leite “tem uma alta frequência da variante C da caseína ß, praticamente ausente na maioria das outras raças de gado leiteiro”. Neste estudo, o queijo feito de leite com esta variante “tem um sabor especial e notadamente mais picante do que os queijos produzidos com leite que tem mais a variante A”. E conclui: “a variante C confere uma especificidade ao queijo beaufort”.

Mesma constatação na Normandia, onde um estudo realizado pelo INRA mostrou uma “frequência maior no leite das vacas Normandas de certos tipos de caseína, que provocam na fabricação do queijo melhor coagulação do leite e retenção de gordura”.

  •  O importante papel dos fermentos

Essas transformações da matéria-prima não têm nada de espontâneas: elas são causadas pela fermentação e pela ação de enzimas que podem, também, ser específicas de cada terroir. Existe, portanto, nos queijos, um conjunto de micro-organismos que não foram colocados de propósito pelo produtor, mas que são originárias dos animais, da fazenda, dos meios de transporte, da queijaria …

“Geralmente, a microflora do leite cumpre um papel sobre a bioquímica do leite”, diz Rémy Grappin, diretor do escritório do INRA, em Poligny. Não há mais qualquer dúvida sobre isso. “A questão agora é saber em que nível essa flora se exprime, como ela desempenha um papel importante na produção de sabores”.

A resposta, sem dúvida, depende do tipo de queijo. “Para queijos de pasta mole, por exemplo, de casca lavada ou florida (com pequenos fungos)”, diz ele, “o papel desempenhado pela microflora do leite pode ser mascarado pela ação de outros fungos superficiais que surgem no processo de maturação, na atmosfera das salas próprias para o envelhecimento do queijo etc., onde sabemos que existem uma produção de moléculas aromáticas muito poderosas”.

Lactococcus cremoris

Lactococcus cremoris

Um estudo realizado pelo Laboratório de Microbiologia de Alimentos da Universidade de Caen destaca o papel da flora nativa de leite. D. Coroler e Micheline Gueguen identificaram dois “crus” distintos de camembert no interior da área de denominação de origem: o Bessin (“com uma flora composta principalmente de Lactococcus cremoris”) e o Bosque Falaisien (“que tem uma flora lactis predominante “). “Esses estudos tendem a demonstrar que a flora nativa desempenha um papel vital no curso dos processos tecnológicos e, portanto, ela participa da tipicidade dos queijos de leite cru”, diz Rémy Grappin.

Penicillium roqueforti

Penicillium roqueforti

Ou seja, os produtores de queijo usavam de forma empírica, sem saber, esses microrganismos naturalmente presentes no meio ambiente. Hoje, eles são mais cuidadosamente selecionados, fortalecidos em coleções de bactérias, como as cultivadas pelo INRA ou por grandes indústrias agro-alimentícias privadas. No estágio artesanal, muitas vezes, os fermentos são ainda um mistério: os fazendeiros se contentam simplesmente, seguindo o mesmo princípio dos padeiros, em colher uma mostra do soro da véspera, criando uma “subcultura” do fermento.Tomemos o exemplo de roquefort. As bactérias (Penicillium roqueforti), que dão ao queijo rajadas esverdeada, vêm da atmosfera.

“Muitas variedades (das bactérias) estiveram presentes simultaneamente”, diz Gérard Alric, ex-proprietário da Papillon. “E ninguém foi capaz de selecionar. Em alguns anos algumas variedades sumiram, mas no ano seguinte um outro tipo voltava …” Hoje, todos os produtores podem escolher entre cinco variedades bem documentadas, às quais todos eles têm acesso pelo INRA. Cada uma afeta, à sua própria maneira, a cor “azul”, que pode ser verde ou azul-cinzento, e na cor da massa – do branco ao marfim – assim como a untuosidade e o sabor… Cada produtor forja assim sua diferença e cria seu próprio estilo.

Se o emprego de fermentos selecionados (especificamente feitos para coagular o leite rapidamente, sem interferências do calor ou do frio, ou de outras bactérias do leite, sem produzir moléculas aromáticas, e também para resistir ao sal) permite um controle muito melhor das fabricações, eles nem sempre são adaptadas aos produtos locais. Certos queijos do vale do Munster não chegam a ter o gosto de um reblochon, nem alguns coulommiers podem ter a aparência de um camembert … O risco de uma banalização e padronização é real.

Para enriquecer a sua coleção de bactérias, o INRA de Jouy-en-Josas se volta agora para Argentina, Polônia e ou Colômbia, países que não são ainda “poluídos” pelos fermentos comerciais. Para os profissionais, encarregados dos “produtos de terroir”, é importante não destruir a sua especificidade com fermentos vulgares. Ao mesmo tempo, os avanços no conhecimento microbiológico permite inventariar e preservar fermentos locais, de um terroir específico, antes que eles desapareçam. Uma tarefa gigantesca, que requer recursos significativos.

Na Auvergne, o cultivo de bactérias específicas dos queijos de denominação de origem controlada regionais, pelo INRA de Aurillac, levou à criação de uma organização profissional que gerencia e distribui fermentos. Da mesma forma, na Córsega, terra de uma forte tradição pastoral, o Laboratório de Pesquisa em Desenvolvimento da Pecuária do INRA é usado para inventariar as bactérias locais. Sua coleção possui cerca de 500 bactérias do ácido láctico. Todas as tecnologias utilizadas, todos os tipos de receitas, permitem às peculiaridades do terroir se expressarem? “Em um estudo realizado sobre o reblochon, vemos que a acidificação muito rápida ou muito lenta marca fortemente as características finais do produto”, diz Jean-Baptiste Coulon.

O tipo de alimento ingerido pelas vacas, então, parece ter pouca influência. Por outro lado, quando a acidificação ocorre a uma velocidade média, há variações no sabor e textura, dependendo, em particular, da natureza do alimento fornecido para as vacas. “Alguns modos de fazer podem, por assim dizer, ‘trair’ o terroir. É preciso, sem dúvida, de sensibilidade e talento do produtor para fazer queijo ‘falar’ sobre sua origem geográfica”, afirma Coulon.

  • A receita, expressão das limitações locais
morbier

Queijo Morbier

Mais uma vez, as receitas são menos ao acaso e mais relacionadas com as condições locais. Queijos tão diferentes como o comté, o mont d’Or e o morbier são inescrupulosamente fabricados hoje em dia com o mesmo leite. Tudo está em suas receitas, que nasceram de circunstâncias particulares.

O comté era feito somente durante o verão, momento de alta produção de leite. Esse queijo de grande volume (cerca de 400 litros de leite para fazer uma unidade) permitia conservar o leite até o período do inverno. A receita consiste em secar ao máximo o leite coagulado para que sua vida biológica se mantenha muito tempo sem estragar: a massa, antes de dessorar, é aquecida a cerca de 50 graus, cortada em grãos pequenos e prensada. O morbier é de certa forma um subproduto do comté. Ele, originalmente feito com a massa que sobrava dos tanques do comté, era coberto de fuligem ou cinzas de madeira para protegê-lo. As duas partes eram então unidas, deixando um rajado preto no centro do queijo.

Queijo Mont-D'or

Queijo Mont-D’or

Quanto ao mont-d’Or, ele não era feito senão no inverno. Com o retorno das vacas aos estábulos, a chegada do frio, a produção menos abundante de leite em fazendas isoladas, os leites diferentes não poderiam ser reunido para fazer grandes queijos. Em geral, os queijos grandes são originários das montanhas, enquanto queijos mais frescos, como os de pasta mole e curto período de maturação são mais comuns perto dos centros urbanos.

O camembert não poderia se desenvolver sem a estrada de ferro e a proximidade da região de Paris. Dois tipos de restrições influem no nascimento de um produto: os limites do terroir (tipos de solo, riqueza da flora…) e as condições econômicas (consumo familiar ou comercialização, venda imediata ou maior tempo de maturação…)

“A observação esquemática do mapa da França mostra duas grandes regiões”, ressalta o historiador Jean-Robert Pitte, “uma dominada por queijos de massa frescas moles, que são pequenos, e outra dominada por massas duras, de majestoso tamanho.

A primeiras região ocupa as planícies e a segunda as montanhas. A explicação para este padrão é simplesmente a dificuldade de transporte nas montanhas. Queijos produzidos em pastagens de verão não podem ser comercializados na descida do vale. Apenas os queijos duros podem ser armazenados por vários meses”. Mas essa explicação técnica não é suficiente : “Para fazer um queijo de longa duração é preciso também aceitar o princípio de práticas coletivas de pecuária: guarda comum de animais e do leite durante o verão nas alpages (pastos nas montanhas, somente acessíveis no verão, por causa da neve no inverno), assim como o compartilhamento do queijo no outono. Os queijos da Franche-Comté e do Beaufortain souberam fazer isso, ao contrário dos fazendeiros do Maciço Central e dos Pirinéus. Isso está relacionado a uma dimensão cultural”.

  • A queijaria moderna se distancia do terroir
Queijo Camembert

Queijo Camembert

As condições que levavam à biodiversidade do terroir já desapareceram completamente. O frio é hoje algo perfeitamente gerenciado pela técnica e o transporte não é mais problema. O camembert é produzido no mundo inteiro. Na França, o emmental é uma fabricação sobre a qual a Bretanha tem um monopólio quase completo!

A empresa Bongrain produz no sudoeste da França uma imitação do vacherin mont-d’Or e produtores do roquefort são mestres na arte de produzir o queijo grego feta. Sabe-se fazer hoje em dia qualquer queijo em qualquer lugar. Mas, muitos queijos conservam ainda particularidades históricas que, intrinsecamente, já não se justificam. Em suma, são apenas herança decorativa: a tarja preta do morbier (agora substituída pelo carvão vegetal), o junco que amarrava o livarot, que impedia o queijo de desabar quando a refrigeração não existia (feito hoje de papel), a palha do queijo sainte-maure de touraine, que era usada para dar suporte aos queijos um tanto frágeis, ameaçados de se quebrarem durante o processo… E porque não, o próprio queijo, inventado para manter o leite!

A queijaria moderna deixa cada vez menos o terroir se expressar. Por sua própria natureza, a mistura de leites de diferentes produtores (que utilizam ou não raças locais ou pastos de sua fazenda), apaga as sutilezas relacionadas aos micro-terroirs. E mais, através de medidas de higiene drásticas, que vão da refrigeração à pasteurização do leite, são destruídas floras específicas, substituídas por fermentos selecionados …

O terroir, na realidade, não é senão um estilo ligado a uma receita. Sim, o terroir pode se expressar dentro de um queijo … se permite-se essa possibilidade. Isso ainda ocorre quando o leite cru é transformado em queijo no próprio local, onde será também maturado, e quando os fermentos são cultivados do soro do dia anterior … No chalé das montanhas, por exemplo, onde você vai comprar o reblochon no próximo inverno, a caminho das estações de esqui …

Publicado originalmente na Revista Amateurs de Bordeaux, em 2003. Fotos: Google Images

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