Quem já tomou uma coalhada fresca e ainda morna, de leite cru, temperada com melado de cana, sabe a delícia que são os produtos lácteos
feitos no mesmo dia.
Queijo minas frescal, ricotas naturais e temperadas, cremes de leite, natas e iogurtes são produtos que sempre fizeram parte da alimentação brasileira.
Por Débora Pereira, 15 de agosto de 2015
Devido às regras sanitárias atuais, é praticamente impossível encontrar produtos frescos feitos de leite cru no comércio, aliás, o próprio leite cru é uma bebida em extinção para consumidores urbanos.
Com a moda de maturação de queijos voltando, quando se fala em queijo artesanal de leite cru, todos já pensam em queijos bem curados, secos, de gosto acentuado. É preciso reconhecer que essa moda foi reforçada pela adoção das regras sanitárias que exigem longa maturação para comercializar o queijo entre os estados brasileiros. Como só podem vender queijo curado, os produtores estão inovando e buscando aprender novas práticas de conservar o queijo mantendo o sabor e a umidade.
Nas rodas da elite cultural e gastronômica o queijo curado é a estrela, mas na mesa da grande maioria dos brasileiros são os produtos frescos que ocupam mais espaço
Se já está difícil emplacar a existência do queijo meia-cura na mente dos fazedores de leis e regras sanitárias para produtos lácteos artesanais, imagina se começarmos a querer fazer valer o direito de produzir delícias ultra-frescas em queijarias urbanas, restaurantes e epicerias? Imaginem que, não somente os produtores de leite que estão nas regiões rurais (fermiers), mas toda essa nova orda de chefs tupiniquins urbanos apaixonados pelos produtos do terruá brasileiro começarem a usar leite cru para preparar cremes, sobremesas e molhos, combinando o frescor do leite com ingredientes locais? Qual seria a regulamentação para isso?
Nesse momento em que a comissão do queijo artesanal do MAPA está se reunindo para refazer as regras em torno do queijo artesanal brasileiro, convidamos nossos leitores a mergulhar nessa reportagem, com informações do Ceará à França, para expandir a mente dos consumidores brasileiros para outras vias lácteas.
Queijo coalho é consumido horas após a produção
A pesquisadora de queijos Maria de Fátima Farias de Lima observou em seu trabalho que, no Ceará, é notável a preferência dos consumidores por queijos frescos:
“Essa preferência tem relação com a história do estado, marcada por tantas estiagens, e com as memórias de penúria que os queijos maturados evocam, uma vez que, por aqui, estariam associados às necessidades dos períodos de seca.
O impedimento da circulação de queijos frescos como medida de segurança torna-se profundamente problemático quando desconsidera
a história e o costume regionais”
O trabalho de Fátima, não ainda publicado, é parte da pesquisa de doutorado em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Aprofundando o assunto, ela descobriu as anotações do viajante inglês Henry Koster, no século XIX:
“o queijo do sertão é excelente quando fresco, mas ao fim de quatro ou cinco semanas fica duro e coriáceo” Henry Koster
Fátima entrevistou um produtor de queijo coalho que disse que o “queijo novo”, “do dia”, é preferência dos consumidores locais. Pedro (nome fictício), cearense de Jaguaribe, explicou que, diferente dos queijos cuja massa é crua e demandam maturação para acentuar o sabor e evitar intoxicações alimentares, o queijo coalho possui massa cozida no próprio soro do leite, que o deixa apto ao consumo logo que termina a prensagem.
Segundo Fátima, Pedro lembra que seus pais “faziam queijos maravilhosos” para consumo doméstico. Quando chegavam as farturas de inverno (período chuvoso), as sobras de leite também eram transformadas em queijos e guardados:
“Quando o acesso à comida se tornava mais difícil,
a gente botava o queijo em cima do seco [pedaço de madeira], pegava o serrote, cortava e ia pro pilão pisar e fazer a farofa. Farofa de queijo, farinha de queijo. Aí, tinha ali para temperar o feijão, comer com café. E aquilo ali era o que sustentava.'”
Produtos artesanais ultrafrescos ressurgem na França
Na França, em dezembro de 2014, os crémiers-fromagers, comerciantes que possuem boutiques de queijo, foram reconhecidos como artesãos. A notícia foi comemorada nos quatro cantos do país por esses profissionais que não se consideram apenas comerciantes. O trato dos queijos, que inclui cuidados de maturacão, a produção diária de produtos ultra frescos para clientes locais e a confecção de tábuas artísticas de queijos para eventos justifica o trabalho artesanal, cotidiano, de um mestre artesão. Como o da mestre queijeira Martine Dubois, em Paris:
No último Salão do Queijo de Paris um stande somente de produtos ultra-frescos foi apresentado (veja o video abaixo). O objetivo é estimular os vendedores a fazerem mais e mais produtos frescos manualmente, assim como recuperar receitas antigas que já foram esquecidas.
“Antigamente os comerciantes de queijo eram conhecidos por vender manteiga, leite, cremes e ovos. Queijo sempre foi um produto mais caro e a população mais pobre se alimentava mais das preparações lácteas, salgadas e doces” conta Eric Lefebvre.
Com a industrialização da produção, esses produtos foram se perdendo e hoje são mais difíceis de encontrar.
Um produto ultra-fresco da região sudoeste da França, no oceano Atlântico, é a jonchée, que era um dos queijos preferidos do ex presidente François Miterrand. De textura bem suave que dissolve na boca, a jonchée é uma coalhada colocada delicadamente em uma esteira de junco, fechada e conservada em água gelada. Como deve ser consumida nas horas posteriores à fabricação, Erick Jarnan, um dos últimos produtores, começa a fabricação as duas horas da manhã e as seis ele percorre os municípios vizinhos para vender em padarias, restaurantes, hotéis e de porta e em porta. Ele compra o leite do seu vizinho: “Transformar o leite em queijo já é uma profissão bem atarefada, criar gado não é minha especialidade” ele comenta.
Vídeos traduzidos por Sebastião Pereira
1 Comentários
Parabéns, excelente site, com preciosas informações, a luta pela produção artesanal (leite crú) é primordial no país.