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Tradicional queijo de Minas é iguaria fora da lei

O repórter Augusto Franco entrou no universo de contradições que envolvem a comercialização dos queijos de leite cru hoje em Minas Gerais. Como mostra o repórter, inexiste para essa iguaria uma distância entre ser patrimônio nacional e um produto fora da lei. A SerTãoBras é um dos personagens do texto. Representada na matéria por por Aluísio Marques, um dos diretores da instituição, a ONG vem buscando alternativas para dar a esse produto sua real condição de patrimônio, colocando-o à mesa do consumidor . A matéria foi publicada no jornal Hoje em Dia, no dia 2 de Maio de 2011.

Tradição fora da lei

Legislação proíbe comercialização do queijo feito de leite cru, modo de fabricação tombado como patrimônio imaterial

Por Augusto Franco, no jornal Hoje em Dia

Produção do Queijo Canastra, um dos mais tradicionais e famosos de Minas

Parece mentira, mas o queijo de Minas, cartão de visitas do modo mineiro de ser, é ao mesmo tempo patrimônio imaterial nacional e produto fora da lei, com produção e comercialização proibidas em todo o território nacional há mais de meio século. Lei assinada pelo então presidente Getúlio Vargas, em 1952, vetou a comercialização e consumo de todo e qualquer queijo feito a partir de leite não pasteurizado, ou cru, em todo o território nacional. Entram na lista os queijos Canastra, do Serro e o Minas Padrão.

A lei que proíbe a iguaria, no entanto, nunca pegou. Tanto que, em 15 de maio de 2008, o próprio Governo federal, por meio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) tombou o modo mineiro de fazer queijo. Isso inclui uso de leite cru, coagulação por processos próprios, prensagem e salga manuais e maturação em mesas de madeira. Exatamente como se faz há mais de 200 anos em diversas partes do Estado.

De acordo com produtores, no entanto, desde os anos 1990 as exigências legais vêm crescendo, e começam a atingir níveis preocupantes. O assunto foi tema de uma audiência pública realizada na Assembleia no último dia 20. Em mais de quatro horas de discussões, produtores reclamaram do endurecimento das regras e da brutalidade da fiscalização. “Nos últimos meses, se a barreira na estrada ou batida do IMA pega o produtor ou vendedor sem selo, apreende o queijo e joga tudo fora”, lamenta o produtor e comerciante Alysson Rodrigues Costa, 32 anos.

Ele é um dos mais de 180 pequenos queijeiros do município de São Roque de Minas, no Centro-Oeste de Minas, que desde os anos 1990 detém o título de maior produtor de queijo Canastra do país. Todas as semanas, Alysson recolhe entre as pequenas propriedades de parentes e vizinhos cerca de 10 mil quilos de queijo, vendidos em feiras nas cidades do interior de São Paulo. “Só eu vendo o queijo de mais de 180 produtores. A maioria conta apenas com essa renda para se sustentar”, assegura.

Responsável pela audiência que debateu o tema, o deputado estadual Adelmo Leão (PT) se diz a favor da fiscalização de questões sanitárias – em especial, a saúde do rebanho e as condições de higiene nos locais de produção –, mas contra a proibição do uso do leite cru. “Tradicionalmente no Estado, a produção do queijo está ligada à atividade rural e à sobrevivência do pequeno produtor”, afirma.

Importante fonte de renda

Hoje o lucro do produtor é o mesmo daquele que vende o leite e não tem o trabalho de produção

Tradicionalmente, as propriedades que fazem queijo são aquelas mais afastadas, cujas estradas de terra em condições ruins ou a distância impedem que o caminhão de leite compre o produto em suas portas. Atualmente, cada litro de leite adquirido pelas cooperativas e empresas de produtores no Estado sai, em média, a R$ 0,70. Para produzir um queijo com pesos de 1 a 1,2 quilo, são necessários 10 litros de leite. Cada queijo é vendido a R$ 7 ou R$ 7,50 para os atravessadores. Ou seja, o lucro do produtor é o mesmo, mas quem vende o leite não tem o trabalho da produção.

O deputado Adelmo Leão ressalta que a atividade de manufatura de queijos artesanais é responsável por manter famílias no campo, evitando o inchaço dos bolsões de pobreza nas grandes cidades. “É ao mesmo tempo fonte de nutrição para inúmeras famílias e atividade econômica, muitas vezes a única dessas pessoas”, afirma. “Queremos conduzir um processo para criar legislações que não descaracterizem o queijo mineiro”, garante o parlamentar.

O primeiro passo para um novo marco regulatório do queijo mineiro está sendo tomado pela Sertãobras, organização não-governamental com sede em Belo Horizonte criada para dar apoio ao produto. A instituição está articulando um trabalho para acompanhar produtores, atravessadores – conhecidos como queijeiros – e consumidores finais. Tudo isso sob a supervisão de universidades, em Minas e em São Paulo, para onde vai grande parte do queijo produzido no Estado.

“Queremos demonstrar para as autoridades que não há problemas sanitários no produto. Que essa proibição é sem sentido”, resume Aloísio Marques, um dos diretores da instituição. Estudioso do queijo e das características sociais e econômicas que envolvem o produto, ele assegura que o queijo minas é um alimento seguro.

“Essa proibição do leite não pasteurizado é uma simples imitação da legislação sanitarista usada pelos Estados Unidos, que tradicionalmente não tem nenhum queijo feito com leite cru. Na Europa, existem centenas delas. Basta que se observe normas de sanidade. A simples proibição não faz sentido”, afirma.

Leis são incompatíveis com a produção artesanal

Desde 1952, quando os queijos de leite cru foram oficialmente banidos do território nacional, um amontoado de leis, portarias e decretos federais e estaduais vem tentando relativizar o veto. Atualmente, a legislação nacional diz que os queijos curados (secos em ambiente fechado, mas ventilado, sob temperatura ambiente) por mais de 60 dias podem ser comercializados sem problemas.

No Estado, uma portaria abre brecha para que o produto com 21 dias ou mais de maturação chegue às prateleiras sem risco de ser confiscado. Este tempo de maturação, no entanto, é muito superior ao utilizado pela maioria esmagadora dos produtores que ainda vivem do produto artesanal, cuja técnica e sequência de ações é tombada como patrimônio imaterial.

Estudos feitos pelas universidades federais de Lavras e de Viçosa apontam que, no caso do queijo do Serro, o consumo deve acontecer entre sete e 14 dias após a produção. Nas serras da Canastra e Salitre, o prazo máximo preconizado é de 18 dias. Depois disso, as características da iguaria mudam e o recheio suave e aromático fica duro, seco.

Outra característica apontada por Aluísio Marques é que o queijo mineiro é produzido nas montanhas. “Todos os queijos tradicionais são maturados a 800 metros de altitude ou mais. É essa a faixa ideal para o desenvolvimento das bactérias que dão textura, aroma e as outras características”, destaca. O tipo de pastagem – gramíneas nativas do cerrado – e a raça das vacas também influenciam. A soma dos fatores determina o “terroir”, ou seja, o sabor específico do produto de cada região.

Atualmente, o Governo do Estado reconhece três regiões produtoras como tradicionais áreas queijeiras de Minas: do Salitre (município de Patos de Minas e entorno), Canastra (São Roque de Minas) e Serro, vizinho a Diamantina, no Vale do Jequitinhonha. Outras duas, o Campo das Vertentes e o Triângulo Mineiro, estão em fase de regulamentação.

As diferenças entre as propriedades e características de cada uma das regiões é tema de um documentário – “O Mineiro e o Queijo” –, que tem direção do cineasta Helvécio Ratton. A produção tem lançamento previsto para julho ou agosto deste ano. Trechos das entrevistas já estão disponíveis no site da Sertãobras (www.sertaobras.org.br), que apoiou a iniciativa.
Leia o texto completo em PDF.

Materia 02-05-2011

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