Imagine um lugar onde
até hoje não chegou
energia elétrica,
cheio de cachoeiras,
onde o gado se alimenta
de pastagens naturais
e o queijo é transportado
em lombo de burros.
Por Igor Messias da Silva, 12 de outubro de 2015
Fotos:Luiz Tarcizio Gonzaga
e Igor Messias da Silva
Edição Débora Pereira
Após Cordisburgo, terra de Guimarães Rosa em Minas Gerais, adentrando-se umas treze léguas pelo sertão das Gerais, chega-se a Fechados, um pequeno arraial. Como o próprio nome sugere, de lá não se avista outros horizontes, apenas uma grande serra em sua frente. Há duas formas dos moradores chegarem ao topo: a pé ou a cavalo.
Margeando de jipe a serra pelas estradas nas suas encostas, encontramos um caminho para tentar chegar a esse ermo. Muito íngreme, mas como o chão é de pedra, o jipe conseguiu atravessar. Avistamos à esquerda uma sequência de cachoeiras e cascatas. O córrego era visível lá no fundo da ribanceira.
Após quase ferver o motor do jipe chegamos ao grotão denominado Caiçara, onde vive Seu Marcinho, Dona Mirthes e dois sobrinhos, o Breno e o César, que ajudam na lida diária. Um lugar quase inimaginável para os dias de hoje, com uma beleza e diversidade que contrastam com nossa noção moderna de falta de coisas.
Morando há onze quilômetros em vôo de passarinho de uma usina hidrelétrica inaugurada em 1927, até hoje eles não têm luz. A melhor estrada de acesso é essa por onde subimos e a atividade principal, imaginem só: queijo artesanal de leite cru! A única produção agrícola possível, pois as terras não servem para lavoura e o leite do gado rústico não tem pode ser armazenado sem refrigeração, nem tampouco descer a serra todo dia.
Os dois locais da ordenha, sempre ao relento, acompanham o regime das águas: em época das secas é no curral de paus de braúna ao lado da casa; nas águas, em um quadrado cercado por arame aos pés de um paredão rochoso onde deságua a Cachoeira das Andorinhas. Os dois estão na parte “baixa” da propriedade, por volta dos 900 metros de altitude.
Quando o bezerro cresce é chegada a hora da mãe entrar no ciclo natural de descanso até ter outro cio, parir e voltar. Nesse período, os bezerros já grandes são levados para a parte mais alta da propriedade e soltos em pastagem 100% nativa entremeada por pedras, “veredas” de altitude e córregos de águas cristalinas, por volta de 1200 metros de altitude. Um lugar mágico onde piscinas naturais dão vista para o sertão das Gerais.
O queijo sai da propriedade uma vez por semana. Eles são colocados em tubos de PVC para conservar seu formato e só depois vão dentro das bruacas. Sim, bruacas! Aquele artefato antigo de couro para se transportar queijos e que se acreditava estar restrito aos museus.
Eles vão a lombo de burro até Fechados, onde o queijeiro (comerciante informal de queijo) conhecido como “missangueiro” os recupera.
A produção de cerca de vinte peças diárias é de responsabilidade de Dona Mirthes e ocorre em dois turnos, sendo o último realizado já sob a luz de lamparinas, após ela preparar o jantar, que fica pronto assim que a noite cai. O valor recebido pelo produto é irrisório perto de tamanho esforço: R$ 10 o quilo.
Se esta fosse uma situação restrita a apenas uma propriedade, poderia se tratar de uma simples exceção, mas não é o caso. Na região do Alto da Serra do Cipó diversas outras famílias tem o mesmo modo de vida.
Os filhos crescem e vão fazer a vida na cidade, pela falta de oportunidades no local. Mesmo com a idade avançada e em isolamento quase completo, esses moradores não querem sair de lá.
Sonham com a chegada da luz, como Seu Dezinho, que no passado até comprou televisão iludido com a promessa que a energia chegaria.
É uma região riquíssima em belezas naturais formada pelos vales dos córregos Caiçara, do Bicho, da Vaca Morta e de Fechados, que contabilizam um sem fim de cachoeiras e cavernas belíssimas.
Antes de nossa última ida até lá enviamos recado para que Dona Mirthes deixasse duas peças maturando até nossa chegada. Levamos alguns vinhos e partimos para degustação.
Primeiro eles estranharam, pois a casca havia ficado um pouco dura, o que atribuo ao coagulante ruim que eles usam.
Depois, acharam uma maravilha. Inclusive testaram colocar perto das brasas do fogão e ficou uma delícia o queijo quente e molinho.
Matutando para curar as ideias
Se a civilização conseguiu interferir em algo no modo de produção do queijo nesse rincão, foi de impor o ritmo de venda de sete dias, periodicidade com a qual o queijeiro passa para buscar o produto. Antes, o queijo descia a cada mês, ou mais espaçado. Outra mudança foi a utilização de coalho industrial, em vez de fabricarem o coalho do estômago de animais, tradição que se perdeu.
Podemos citar em Minas Gerais experiências positivas de ajuda aos produtores de queijo, como o trabalho realizado pelo Sebrae na serra da Canastra e no Serro e o trabalho do IPHAN para documentar as velhas e boas práticas de fabricação.
Mas, outras iniciativas podem surgir. Imaginem se um empresário, ou grupo de empresários da alimentação adota uma comunidade como essa, pagando um preço justo pelos queijos e dando a eles o tempo de curar e apurar o seu sabor? Imaginem um plano de divulgação desse queijo que considere turismo, gastronomia, proteção do meio ambiente e cultura, ao mesmo tempo que motive a autonomia da comunidade?
Investir nesse local de forma consciente pode ajudar essas famílias a trabalhar de uma forma boa, limpa e justa. Mas, fazer com que eles preservem sua tradição de fabricação, mantenham o sabor do seu queijo, ao mesmo tempo em que se adaptam à chegada de luz, da tecnologia e das normas de fabricação orientadas pelo IMA é um grande desafio.
Quem sabe esse rincão possa ser reconhecido e demarcado como um novo ‘terroir’? O queijo do Alto da Serra do Cipó, delimitado por aqueles que realmente vivem ali por gerações e produzem esse tradicional produto mineiro do alto da imensidão da serra.