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O canastra é nosso

por Beatriz Marques, da Revista Menu

Enquanto luta pela sobrevivência, o queijo tradicional mineiro conquista novos e apurados paladares

Amanteigado, arenoso, amendoado e picante. Essas são algumas sensações que o queijo Canastra, com diferentes datas de maturação, pode proporcionar ao paladar. Com mais de 200 anos de história, este queijo, produzido com leite cru na região da Serra da Canastra, a sudoeste de Minas Gerais, é uma iguaria nacional que se tornou rara nas mesas fora de seu Estado natal.

Suas notas aromáticas e texturas únicas aguçam a veia criativa dos chefs. “É um queijo muito versátil, e, quando curado, traz muita complexidade de aromas”, diz Felipe Ribenboim, do Dois Cozinha Contemporânea, que, junto com Gabriel Broide, desenvolveu as três receitas que ilustram esta reportagem. Mas os obstáculos de comercialização do Canastra artesanal o afastam dos cardápios dos restaurantes.

“É um queijo único, com cara, gosto e cheiro de Brasil, porém, ainda enfrentamos muita dificuldade em encontrá-lo”, atesta Roberta Sudbrack, chef do restaurante homônimo carioca. Aproximar os pequenos produtores dos chefs e, assim, apoiar as mudanças na legislação que ajudem a venda do queijo artesanal é um dos objetivos da ONG SertãoBrás.

“Este contato é uma das maneiras de estimular o consumo”, afirma o antropólogo Carlos Alberto Dória, um dos seus fundadores. Um exemplo foi a degustação do queijo com diferentes tipos de cura, realizada recentemente na Escola Wilma Kövesi de Cozinha, em São Paulo. Na plateia, diversos cozinheiros, como Léo Botto, do restaurante La Frontera, e Ribenboim. Botto já conseguiu emplacar alguns pratos com Canastra no cardápio, como a salada serra com alface roxa, pupunha, tomate caqui, molho de limão-cravo, com queijo curado em 21 dias, e o espaguete à carbonara com o mesmo queijo.

“A aceitação é ótima, mas as pessoas ainda não têm consciência da importância do Canastra para a nossa cultura gastronômica”, conta ele. O Canastra, considerado patrimônio histórico pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e com projeto para que sua região produtora se torne uma Indicação Geográfica Canastra, foi introduzido pelos imigrantes portugueses, que trouxeram a expertise do queijo da Serra da Estrela para o interior mineiro.

Da receita secular, poucas foram as mudanças de um conhecimento passado de pai para filho. O leite cru ordenhado no dia recebe o coalho (antes retirado da raspagem do estômago seco do tatu) e o “pingo”, soro escorrido do queijo elaborado no dia anterior que vira um fermento natural para a produção seguinte. Depois de talhada, a massa é espremida e colocada em moldes.

Aí se definem os três estilos do Canastra: o Real, de 30 centímetros de diâmetro, entre 15 e 20 centímetros de altura, e 5 a 7 quilos, é preparado em ocasiões especiais. O Merendeiro ou Vigia, com diâmetro de 10 centímetros, altura de 8 centímetros e 300 a 400 gramas, é consumido no dia a dia. O queijo que leva somente o nome Canastra, com 17 centímetros de diâmetro, 7 centímetros de altura e de 900 gramas a 1,3 quilo, é o mais difundido.

No molde, o queijo recebe uma camada de sal grosso e passa um dia escorrendo o soro (“pingo”). Depois é desenformado e maturado, em um processo que pode durar, em média, até um ano. Nesse período, o queijo fica em uma prateleira e é virado diariamente, em processo artesanal mantido por mais de 27 mil famílias.

Depois de concluído, começam os entraves para a venda do queijo, que esbarram em parâmetros como padronização, legislação e condições sanitárias. Lilian Haas, coordenadora da Agrifert, associação para gestão de projetos rurais, e consultora da Associação dos Produtores de Queijo Canastra, aponta diferenças entre as legislações federal e estadual. O Ministério da Agricultura determina que queijos de leite cru só podem ser vendidos a partir de 60 dias de maturação.

A lei estadual mineira se baseia no teor de umidade do queijo, que não pode ultrapassar os 45,9% de umidade expressa em base úmida, índice limite para a não proliferação de microorganismos maléficos. “O Canastra demora cerca de três semanas para chegar a esse grau de umidade”, conta Lilian. Nas duas esferas de governo, há a intenção de conciliar as legislações.

O fiscal federal agropecuário Clério da Silva diz que já foram realizadas reuniões no Ministério da Agricultura com esse intuito. “Será analisada a possibilidade de diminuir o tempo de maturação”, afirma Silva. Além disso, muitos produtores precisam se adequar às exigências sanitárias da lei, o que inclui mudanças desde o local em que o gado é mantido até na casa de queijos, onde é maturado.

“Mas os pequenos produtores precisam de investimento para se adequarem às normas”, afirma Lilian. Outro obstáculo está no entreposto, local fiscalizado pelo governo federal onde ocorre a preparação do queijo para receber o selo do S.I.F. e ser liberado para venda em outros Estados. O produtor do Canastra depende de entrepostos de outros locais, já que o de Casca D’Anta, que atendia a região, foi desativado.

“Todas essas dificuldades desanimam o produtor a regularizar a fazenda”, completa Lilian. O resultado é que muitos “queijeiros”, os chamados intermediários, compram o laticínio direto da fazenda e vendem por conta própria, muitas vezes sem se preocupar com seu transporte e armazenamento. “A maioria da produção do Canastra está sem controle.

A legislação precisa de um estatuto especial que atenda o pequeno produtor”, defende Dória. Ainda na falta de uma Indicação Geográfica, o nome Canastra é encontrado em diversos queijos produzidos em cidades vizinhas. Com tantos entraves, a ideia da SertãoBrás, de aproximar chefs e pequenos produtores, pode ajudar para que esta história tenha um final feliz.

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