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Entre dois mundos

Matéria da Revista Florence – Edição 31, por Renato Moraes

De um lado, o queijo mais festejado da atualidade, foco de frequentes matérias nas principais publicações gastronômicas, presente nas cozinhas de grandes chefs e nas mesas de gourmands e gourmets abonados de todas as partes do mundo. De outro lado, os queijos artesanais de Minas Gerais, produzidos em três regiões distintas, na Serra da Canastra, no Serro e no Alto Paranaíba, próximo à divisa com o estado de Goiás. A separá-los, além dos cerca de 9 mil quilômetros de distância e do oceano Atlântico, uma diáspora que há décadas rodeia o segundo, aparentemente inexplicável.

Colocando em pratos limpos, o primeiro, originário da Serra da Estrela, incrustada na parte mais alta de Portugal, localizada na área central do país, circula livremente pelos quadrantes do planeta, fiel às tradições seculares de sua fabricação, transmitidas através de gerações. De origem familiar e concentrada em vales bucólicos ao pé das montanhas, vê seu preço local, em torno de 15 euros o quilo, ser comercializado no Brasil por estratosféricos 370 reais. Ao passo que os mineiros, com características de manufatura assemelhadas e preços na faixa dos 13 reais/kg, esbarram há décadas na barreira de leis sanitárias que confinam o seu trânsito ao estado, impedindo de atravessar sequer as fronteiras federativas, fato desconhecido pela quase totalidade da população brasileira.

Pomo da discórdia e razão da proibição, a utilização do leite cru, sem pasteurização, no processo de sua confecção. O que, no caso português, também marcado pela mesma prática, assim como vários outros da Europa, jamais representou empecilho para sua produção e comercialização, protegido, inclusive, pela Denominação de Origem Controlada (DOC).

É verdade que as semelhanças entre eles não são tantas assim. O lusitano utiliza exclusivamente leite de ovelhas e de apenas duas raças – a bordaleira e a churra mondegueira -, ambas pastoreadas na região. Tidas como menos produtivas, o alto teor de gordura do seu leite é essencial para garantir a cremosidade que dá fama ao queijo. Cru, o leite ordenhado no dia é coagulado com os pistilos da flor de cardo, uma espécie cheia de espinhos arroxeados, quase fosforescentes. Além disso, somente sal. Produzido de outubro a maio, época de termômetros mais baixos, deve ser maturado em câmara fria (6ºC a 14ºC), com temperatura e umidade controladas, por no mínimo 30 dias (o tipo amanteigado) ou 90 a 120 dias (o velho).

Ali, passa por duas fases de cura, virado diariamente e lavado de dois em dois dias, no período inicial e de três em três no seguinte, quando cria casca e ganha cor. Fora isso, deve obedecer às exigências de padrão de produção e formato, passando por uma série de exames e análises dos rebanhos e das queijarias antes de obterem a certificação. Crosta lisa, semimole e  amarelada, o amanteigado possui uma pasta cremosa de cor marfim, com aroma intenso e sabor levemente acidulado, com suave amargor. De formato cilíndrico e sem bordas definidas, é envolvido por uma cinta de tecido branco, para que não deforme e permita ser comido, sim!, às colheradas. Já o velho, também cilíndrico, tem crosta lisa e firme, pasta dura, ligeiramente quebradiça, com aroma persistente e sabor forte, picante, devendo ser cortado em fatias.

Seu parente tupiniquim – embora não tenha sido encontrado, até hoje, qualquer documento ou registro que comprove tal descendência – adota uma fórmula similar, embora distinta. Seja na Canastra, no Serro e no Salitre, nome da serra e principal reduto da região do Alto Paranaíba e Araxá, a fabricação se baseia no leite cru, só que de vaca e de raças diversas, como jersey, girolanda, mestiça etc. Com baixa produtividade, ela é igualmente compensada pelo alto teor de gordura do leite, que garante o caráter amanteigado do produto final.

Os procedimentos não fogem ao padrão comum entre os queijeiros artesanais: depois de ser extraído por ordenha manual ou mecânica, e ainda quente, o leite cru é coado por meio de um tecido e recebe coalho industrializado (uma das duas únicas alterações sofridas através dos tempos, antes obtido da enzima do estômago seco de um animal) além do “pingo”, o principal diferencial e espécie de DNA deste tipo de queijo. Por “pingo” compreenda-se um fermento natural recolhido do soro drenado durante a sua retirada dos queijos feitos no dia anterior. Nele se concentra um conjunto de bactérias lácticas específicas de cada região em que é produzido, conferindo a sua identidade própria.

Preparada e cortada a massa, esta passa por uma peneira, para drenar o soro e, em seguida, ser modelada em formas de plástico, forradas com um pano fino (a segunda mudança observada, substituindo as centenárias de madeira, em geral feitas de jacarandá), para depois passar por duas prensagens manuais do queijeiro, arte de cada um capaz de garantir melhor consistência. De volta às formas, após se lavado, é a vez da modelagem até ganhar o formato final, cilíndrico, com tamanhos variando de 12 a 15 cm de diâmetro. Recebe, então, uma camada de sal grosso em um dos lados, processo que se repetirá entre seis e 12 horas depois na outra superfície o que, além de temperar e acentuar o sabor do queijo, garantirá a qualidade do pingo a ser usado na leva do dia seguinte.

Dois dias depois, é retirado da forma, recebendo acabamento através da ralagem ou grosagem, feita com ralo metálico ou lixa e, enfim, colocado para maturar em prateleiras, sob temperatura ambiente e lugar fresco e arejado, por um período que, idealmente, deveria girar em torno de 15 dias para o meia cura, um prazo mais longo para o curado e até superior a sete meses para o mais fino exemplar da espécie, o Canastra Real, de formato avantajado e, segundo consta, destinado em outras eras à recepção de autoridades governamentais e figuras ilustres. Durante esse tempo, é virado duas vezes ao dia, logo cedo e ao anoitecer. De modo a homogeneizar seu sabor, textura, cor e intensidade, até ser liberado para o consumo. Além de contar com o fator extra e diferenciado de poder ser fabricado em todos os 365 dias do ano.

Foi dito que deveria porque, lamentavelmente, o padrão ditado pelo mercado dominado pelos grandes laticínios tem obrigado o segmento a se curvar às falsas aparências dos chamados “queijos frescos”, neles incluso o difundido “queijo Minas”. Espécies aquosas, quando não mirradas, de massa branca e sem praticamente nenhum gosto, são fabricadas com leite pasteurizado a toque de caixa e escala industrial e encontradas em pontos de venda de norte a sul do país. Em nome de uma suposta higienização e de práticas sanitaristas impostas por países hegemônicos, seguindo o modelo dos Estados Unidos pós-Segunda Guerra Mundial, disseminou-se tal conceito e cultura, baseados na tese da eliminação dos micro-organismos nocivos à saúde existentes nos queijos de leite cru, com evidentes prejuízos para os seus produtores.

Tanto que uma rápida visita aos 16 boxes do Mercado Central de Belo Horizonte dedicados ao escoamento da produção desses queijos oferece provas cabais dessa onda de descaracterização. Grande parte da oferta, hoje, foge à sua tipicidade, concentrada em queijos com curta maturação, desprovidos da casca grossa e amarelada e da consistência que, a rigor, deveriam estar presentes neles. Uma questão de sobrevivência frente à concorrência e à desinformação generalizada, situação reconhecida pelos produtores, reféns do quadro atual.

Não bastasse isso, o cerco da legislação sanitária vigente no Brasil desde 1952, com seus inacreditáveis novecentos artigos, se encarrega há décadas de colocar em xeque e sob risco permanente a preservação dessa original linhagem alimentar. De acordo com um deles, salienta o sociólogo Carlos Alberto Dória, estudioso do assunto e intransigente defensor dos queijos artesanais mineiros, “estipula-se que uma queijaria poderá operar dentro dos seus moldes somente se no perímetro ao redor não existir uma usina de beneficiamento de leite. Logo, de existência circunstancial e transitória”.

Se pensam que o cerco termina aí, ledo engano. Uma portaria baixada pelo Minísterio da Agricultura em 1998 estipula um prazo mínimo de 60 dias de maturação para que a sua venda seja autorizada, o que, em tese, inviabilizaria sua produção ou o conduziria à clandestinidade. Isso só não aconteceu graças ao ex-governador Itamar Franco, que, em janeiro de 2000, editou uma lei estadual permitindo a comercialização do queijo elaborado com leite cru e prazo de maturação mínima de 21 dias e circunscrito, obviamente, ao território dos mineiros. Fato que não impede de encontrá-lo nas barracas das feiras livres de São Paulo e de estar presente na grande mídia como destaque de eventos gastronômicos de sofisticados restaurantes paulistanos.

A frente de resistência ganhou um outro alento, meses depois do decreto, quando um estudo preparado pela atual secretária da Casa Civil e Relações Institucionais de Minas Gerais, Maria Coeli Simões Pires, com o respaldo do então secretário de Cultura, Ângelo Oswaldo de Araújo, possibilitou o tombamento do queijo do Serro como patrimônio imaterial pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA). Em meio a tais acontecimentos, dois franceses, Jean-Claude Le Jouen, do Instituto de L’Elevage, de Paris, especializado em legislação e laticínios artesanais, e Marguet Martial, dirigente rural e fabricante do queijo Comté – um cilíndro de 40 quilos que requer 400 litros de leite cru – percorreram as montanhas das três regiões numa série de encontros com produtores, dentro de um programa de cooperação técnica França-Brasil. Sua principal contribuição foi despertar o espírito associativo, que resultou na criação de cooperativas de produtores em todas elas, destinadas à defesa dos seus interesses e do aprimoramento das técnicas e métodos de fabricação.

A reboque do pioneiro trabalho de Maria Coeli, atualmente finalizando um livro a respeito do assunto (O saber sobre a mesa: mémoria e arte do queijo do Serro), foi a vez do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) carimbar, em 2008, sua chancela de patrimônio imaterial, estendida ao trio de pólos queijeiros, a partir de um dossiê coordenado pelo professor de história José Newton Coelho Meneses, tendo por base “seu caráter identitário, referência simbólica e traço de união sócio-cultural”. E, por último, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva editou um decreto federal, em 2010, com o objetivo de criar uma rede nacional de entidades fiscalizadoras que permitiriam a livre circulação dos produtos da agroíndustria artesanal. Mas que depende do aval dos técnicos do Ministério da Agricultura, e pedra no caminho de toda essa história.

Artífice da decisão presidencial, ao cobrar e receber a promessa do mandatário, num encontro à base de queijo e goibada junto com a então ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, Lian, filha do empresário Gabriel Andrade, um dos sócios majoritários do Grupo Andrade Gutierrez, é outra que vem se dedicando à defesa da causa desde 2007, quando resolveu fundar uma ONG, SerTãoBras, com essa finalidade. Atuando na mídia, nos meios políticos, junto ao poder público e aos produtores locais e tendo como bandeira o slogan “Legalize já”, uma de suas iniciativas vem à luz no documentário O mineiro e o queijo, dirigido pelo cineasta Helvécio Ratton, para cuja produção contribuiu financeiramente. Ao longo dos seus 70 minutos, o filme procura rastrear e expor a realidade em torno do assunto, além dos dilemas, controvérsias e contradições que o rodeiam, replicando, de certa forma, o que o norte-americano Jonathan Nossiter fez em relação aos vinhos em Mondovino. Vinte e dois queijeiros dos três terroirs desfiam na tela estórias e memórias, modo de vida e rotinas diárias, expectativas e pontos de vista, tendo como pano de fundo a geografia de cada lugar e o contraponto de especialistas e autoridades. Partindo do slogan estampado na primeira cena (Patrimônio proibido) até a derradeira, em que um enorme pão de queijo saído do forno à lenha do casal José Pão e Ronilda, dignos representantes de um saber ancestral resguardado no cume da Serra da Canastra, é partido, o filme deixa no ar uma série de incógnitas para a possível equação do impasse. Saber cujas raizes remontam aos primóridos da colonização de Minas Gerais, à época do chamado ciclo do ouro. Exauridos os aluviões, as pequenas propriedades camponesas dedicadas à cultura de subsistência, situadas em locais de difícil acesso e comunicação, recorreram ao queijo, “forma clássica e antiquíssima de preservar a caseína, proteína do leite, evitando o seu desperdício. O que fez a produção se alastrar e persistir no curso do tempo”, lembra Dória. Apesar de parcos, conforme pode ser confirmado numa rara e recente obra sobre o tema, Uma longa e deliciosa viagem, de João Castanho Dias -, os relatos históricos dão conta de interesse que os queijeiros artesanais dos montanheses despertavam nos viajantes e pesquisadores estrangeiros.

O francês Augusto De Saint Hilaire anota a respeito deles, em seu relato sobre a viagem às nascentes do rio São Francisco, na cabeceira da Canastra, em 1817, que “sua consistência é compacta, sua cor se aproxima da dos queijos de Gruyères, mas o tom amarelo é mais pronunciado, ao que me parece. Seu sabor é suave e agradável”. Se lá retornasse agora, veria que as pradarias cobertas pelo capim gordura que tanto o impressionaram cederam lugar, em boa parte, à invasão das braquiaras, ocupando as pastagens destinadas ao gado leiteiro.

Permanecem os poucos vestígios da ocupação humana, responsável por uma agricultura familia informal, cravada em pleno sertão das Gerais, e tendo os queijos por eles produzidos da mesma forma há mais de três séculos como uma proval cabal de identidade própria, persistência e amor à terra. Lá, como no Serro e no Salitre, o vento insiste em fazer curva, desafiando os tempos modernos e as leis dos homens, especialmente as tacanhas e caducas.

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