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Tese de Bibi Cintrão: os desafios da legalização dos queijos de leite cru.

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Leitura recomendada para todos os interessados em compreender o que está por trás das regulações sanitárias e sua relação com a produção de queijos artesanais

Fotos de Leonardo Dupin

Rosângela Pezza Cintrão, mais conhecida como Bibi Cintrão do movimento Slow Food, defendeu em 2016 a tese «Segurança, qualidade e riscos: a regulação sanitária e os processos de (i)legalização dos queijos artesanais de leite cru em Minas Gerais», com um estudo de campo realizado em dois municípios da Serra da CanastraCom mais de 300 páginas, relata as idas e vindas da luta dos mineiros pelo reconhecimento legal de um de seus patrimônios culturais alimentares mais preciosos: os seus queijos artesanais de leite cru, parte do modo de vida de milhares de produtores em todo o Estado e ainda presente na mesa e na culinária daqueles que conseguem ter acesso a ele, apesar das restrições para a sua comercialização. A pesquisa busca desvendar a lógica que está por trás da regulação sanitária e das perseguições que dificultam sua venda legalizada.

Algumas perguntas, que para a autora pareciam contradições, nortearam a construção da pesquisa. Uma delas era compreender a questão:

Como um produto que é apontado por análises laboratorais como “impróprio ao consumo humano” é consumido às toneladas e considerado como seguro e inócuo por aqueles que os consomem, continuando a ter mercado, mesmo com todas as perseguições e restrições?

A outra questão foi entender por que, apenas a partir os anos 1990, o fato dos queijos não terem inspeção sanitária se torna um “problema” para os produtores artesanais e uma ameaça à continuidade de sua existência, considerando que o RIISPOA – Regulamento de Inspeção Industrial dos Produtos de Origem Animal – legislação que regula do ponto de vista sanitário os queijos artesanais – existia desde a década de 1950 e eles nunca haviam se legalizado,

A tese, que é  interdisciplinar na área de ciências sociais, trata também das relações de poder e grandes interesses econômicos envolvidos nos mercados de produtos lácteos e nas mudanças acontecidas na vigilância sanitária a nível mundial a partir dos anos 1990.

Logo no começo da leitura, três citações dão pistas sobre sobre o embate que vai se desenrolar ao longo da pesquisa,que vão chamar a atenção para o cenário atual pós iluminista que vivemos hoje e para o fato de que a “ciência” não é neutra e nem é única, havendo muitas controvérsias mundiais em torno dos riscos dos queijos de leite cru. A primeira é do Nietzsche:

“Em algum ponto perdido deste universo, cujo clarão se estende a inúmeros sistemas solares, houve, uma vez, um astro sobre o qual animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o instante da maior mentira e da suprema arrogância da história universal” .

A segunda é da antropóloga Manoela Carneiro da Cunha (2012):

A unidade da Ciência com C maiúsculo é um constructo para inglês ver (…) a autoridade sobre a interpretação do mundo que a Ciência reivindica – mais ampla do que jamais foi a do Papa – se assenta no seu impressionante sucesso tecnológico, cujos custos sociais e ambientais só agora estão sendo postos na equação.

E uma outra citação de Ploeg (2008) confirma o cenário atual pós iluminista que vivemos hoje:

A ciência gera tanto conhecimento quanto ignorância“.

De um lado, em nome da ciência a segurança sanitária, persegue-se um alimento tão enraizado culturalmente como o queijo artesanal de Minas Gerais. Do outro, a população que mantém seus hábitos alimentares e desconfia do excesso de cuidado dos técnicos especializados. A riqueza da tese da Bibi está em mostrar esse paradoxo, de um lado a regulação sanitária tenta se legitimar através de padrões de ‘qualidade’, ‘risco’ e ‘segurança do alimentos’, atestados em exames de laboratório; do outro, a população que tem seus próprios critérios de segurança e de qualidade, construídos a partir da prática na produção, comercialização e consumo cotidiano dos queijos. A grande maioria dos produtores (com excessão daqueles que buscam mercados de nicho para vender para populações de maior renda) continua a fabricar o queijo de acordo com suas “boas práticas”, aprendidas com os ancestrais e em constante evolução, em contato com novos conhecimentos e materiais, embora as mudanças passem nem sempre sejam percebidas (ou consideradas) pelos técnicos especializados e agentes sanitários, que têm como referência processos industriais de produção. E a imposição de métodos e parâmetros industriais aos produtores que buscam se legalizar muitas vezes alteram características do queijo que são valorizadas pelas populações locais.

“Por serem produtos essencialmente ‘vivos’, contendo ‘maus microrganismos’ mas também ‘bons microrganismos’, responsáveis por características únicas de sabor e textura, as normas sanitárias baseadas em critérios industriais entram em choque com tradições de produção e consumo dos queijos. Assim, os processos de ilegalização geram reações, que buscam possibilidades de legalização em emaranhados legais e institucionais cada vez mais complexos e que permitem a inclusão apenas de uma minoria de famílias produtoras. A grande maioria permanece na informalidade, cada vez mais construída como ilegalidade.”

 

CINTRÃO, ROSÂNGELA PEZZA. SEGURANÇA, QUALIDADE E RISCOS: A REGULAÇÃO SANITÁRIA E OS PROCESSOS DE (I)LEGALIZAÇÃO DOS QUEIJOS ARTESANAIS DE LEITE CRU EM MINAS GERAIS. Tese defendida no Curso de Pós- Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade. Sob a Orientação do Professor Renato Sergio Jamil Maluf, Rio de Janeiro Setembro de 2016. (BAIXAR EM PDF)

Bibi concedeu a entrevista abaixo por email e skype.

Bibi, primeira à direita, em degustação de queijos em Medeiros, Minas Gerais.

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1) Qual a sua formação, o seu percurso profissional e quando você começou a se interessar por queijo artesanal em sua vida?

Bibi: Cheguei aos queijos artesanais por diferentes caminhos. Um primeiro pessoal, por gostar muito de produtos lácteos, mas também de cozinhar e de conhecer diferentes sabores e culturas alimentares regionais. Pelo lado profissional, é uma trajetória mais longa. Sou do interior de São Paulo e me formei em agronomia nos anos 1980. Na faculdade comecei a participar de movimentos de estudantes que questionavam o modelo de modernização de agricultura chamado de “Revolução Verde”, pelas suas consequências sócio-econômicas (exclusão social, êxodo rural, concentração de terras, dependência de insumos industriais) e ambientais (uso elevado de insumos químicos e agrotóxicos, degradação de solos, poluição de rios e consequências para a saúde), mas também abrangia uma visão crítica da ciência e da tecnologia, questionando sua suposta neutralidade.

Com este movimento – atualmente chamado de “agroecologia” – aprendi tanto a desconfiar de modelos tecnológicos importados de países do norte (com realidades sociais, econômicas, culturais e ambientais muito diferentes das nossas) quanto a valorizar os conhecimentos dos agricultores familiares e das populações tradicionais, que trabalham em conexão com a natureza. Depois de formada, trabalhei com estas populações no nordeste e lá conheci os queijos de coalho e requeijões/queijos de manteiga artesanais, comprados em camelôs e em feiras. No curso de agronomia eu fiz disciplinas de tecnologia de alimentos e havia sido alertada, pelos professores, que queijos com furinhos continham contaminação e eram perigosos. E os queijos de coalho eram muito furadinhos. Mas como eu adoro queijo, eles eram bem gostosos e com preços acessíveis, eu comprei nas primeiras vezes com algum receio, que logo passou. E por quatro anos consumi cotidianamente estes queijos.

“No que se refere aos riscos dos produtos de origem animal, as feiras do nordeste deram um certo nó na minha cabeça, em especial com relação às carnes, vendidas penduradas em barracas de madeira, sem refrigeração e sem proteção das moscas, aparentemente sem causar nenhum problema à saúde, pois as pessoas compravam semanalmente e eu nunca ouvi falar de nenhuma intoxicação por este consumo. Eu nunca arrisquei comprá-las, mas percebia uma forte incongruência entre o que havia aprendido na faculdade e aquela realidade.”

No nordeste acompanhei produtores extrativistas de mel no sertão semi-árido e fizemos algumas tentativas de auxiliá-los na comercialização, mas quando nos deparamos com as exigências legais para as casas de mel (construções em alvenaria, com equipamentos de inox, água corrente etc), completamente fora da realidade deles, desistimos e eles continuaram a vender informalmente. As exigências sanitárias me pareciam descabidas, pois por ser a reserva alimentar das abelhas, o mel é um produto incrível, que se não for adulterado se auto-protege e se conserva por longos períodos. Percebia assim essas incongruências (no queijo, na carne, no mel), mas não fui atrás de entender, do ponto de vista científico e tecnológico, quais seriam as explicações.

Na década de 1990 eu resolvi fazer o mestrado em “Desenvolvimento e Agricultura”, no CPDA/UFRRJ e terminei “migrando” para a área de Ciências Sociais, mas sempre trabalhando com temáticas ligadas ao rural. Vindo morar no Rio de Janeiro (e sendo amante dos queijos), tentei comprar queijo de coalho nos supermercados, mas eram sem gosto e borrachentos, diferentes dos que eu comprava nas feiras do nordeste. Pensei então em comprar queijos de mais perto e procurei pelos queijos minas meia cura, que conhecia das beiras de estrada. Mas no comércio encontrava apenas queijos “minas padrão”, que me pareciam sem identidade e sem graça. Não entendia porque se chamavam “queijo minas” e eram tão diferentes do “meia-cura”.

Só fui achar as chaves para responder a estas questões já nos anos 2000, quando entrei para o Movimento Slow Food e fiquei sabendo da existência da campanha e do manifesto internacional em defesa dos queijos de leite cru.  Eu nunca havia ouvido falar desta diferença entre queijos de leite pasteurizado e de leite cru. Comecei a entender por que os queijos comprados informalmente eram mais gostosos. E também a origem do uso figurativo do termo “pasteurizado”, como metáfora para coisas padronizadas, sem graça e sem identidade.

Mas, esta aproximação me trouxe novas questões, me chamando atenção a menção, no manifesto, às “mãos estéreis de controles higiênicos globais”, que estariam destruindo a saúde dos produtos lácteos e que terminariam por debilitar nosso sistema imunológico.

Quais seriam estes controles? Como atuariam? As campanhas do Slow Food, em defesa da biodiversidade e das culturas alimentares são muito próximas às discussões da agroecologia, pois enfatizam os saberes tradicionais e consideram a diversidade (e a “falta de padrão”) como uma virtude e não como um defeito.

Em 2011 organizamos o Grupo de Trabalho Slow Food Brasil sobre Queijos Artesanais e comecei a entrar mais fundo no “mundo dos queijos”, tendo acesso a produtores de diferentes regiões e países, assim como a cozinheiros, amantes e degustadores de queijo, pesquisadores, etc. Começaram a ficar mais claras para mim as diferenças entre os produtos artesanais (feitos em pequena escala nas próprias regiões produtoras da matéria prima e comercializados localmente) e os industriais (produzidos em espaços mais urbanizados, em grande escala, transportados a maiores distâncias). E percebemos que os queijos artesanais de leite cru são um ícone e um símbolo da resistência à padronização e à homogeneização dos alimentos produzidos em massa. Porque os queijos artesanais de leite cru são essencialmente vivos e sociobiodiversos. E marcam identidades culturais de diferentes povos e regiões. As pessoas tendem a gostar mais e a sentir falta dos queijos da sua região de origem, dos queijos que comeram na sua infância. Com a crescente industrialização e urbanização, as novas gerações vão perdendo estas referências, pois os supermercados vão tendo o monopólio de venda de produtos lácteos, cada vez mais industrializados. Mas mesmo quem nasceu em grandes cidades e nunca teve a oportunidade de consumir um queijo artesanal de leite cru, percebe a diferença de sabor e consistência quando prova a versão artesanal (não pasteurizada) dos queijos que está acostumada a consumir.

O Slow Food me ajudou a aprofundar e a trazer, para a indústria alimentar, as mesmas críticas feitas à modernização industrial  da agricultura. Que é também a mesma lógica esterilizante da indústria farmacêutica, que deprecia e persegue os conhecimentos das diferentes medicinas tradicionais. Foi também no movimento Slow Food onde ouvi pela primeira vez o termo “hiper-sanitarismo”, que me ajudou a entender melhor as incongruências entre o ensino nas universidades (voltado para produções industriais) e a realidade das feiras e mercados tradicionais.  

Algumas questões foram se clareando, mas novas perguntas se colocaram, em especial sobre como se explicaria a grande diferença entre o que é considerado uma visão “científica”, que considera estes produtos como de “alto risco” e o que é chamado de “visão leiga”, das percepções das populações locais que produzem, vendem e consomem estes produtos e os consideram gostosos e saudáveis. Este foi um dos pontos de partida da pesquisa.

Canastra

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Para você, quais as tendências no mundo queijeiro brasileiro ao que diz respeito aos processos de denominação de origem? 

Bibi: As denominações de origem, que na legislação brasileira foram chamadas de Indicações Geográficas (IGs), não foram meu objeto específico de estudo e não foi por conta delas que eu escolhi, para a pesquisa de campo, a região da Canastra, em Minas Gerais, embora esta tenha sido uma das pioneiras na obtenção de um selo de Indicação Geográfica para um queijo artesanal no Brasil.

Cheguei assim aos queijos Canastra por outros caminhos, que não as IGs. Eu elegi a regulação sanitária como foco da pesquisa e, dentro dela, os queijos de leite cru, por considerá-los uma espécie de “símbolo da resistência”, mas poderia ter estudado a farinha de mandioca artesanal, por exemplo (tenho um artigo que cita estes dois produtos), que também tem problemas com a legislação sanitária. Escolhi Minas Gerais porque foi o primeiro estado do Brasil a aprovar uma legislação sanitária específica para os queijos artesanais (a lei estadual 14.185, de 2002), pioneira na defesa dos queijos de leite cru o Brasil, por ter ousado “desobeceder” a chamada “regra dos 60 dias”, que obriga a cura, por no mínimo 60 dias, dos queijos feitos com leite não pasteurizado.

Esta regra teve origem nos Estados Unidos e atualmente é fortemente recomendada pelo Codex Alimentarius (código de leis sanitárias que atualmente regula o mercado internacional de alimentos). Ela foi internalizada no Brasil através de acordos internacionais de comércio, estando presente no RIISPOA – Regulamento de Inspeção Industrial de Produtos de Origem Animal, que como o nome sugere é voltado para a inspeção de produtos industriais, mas que regula também alimentos artesanais e não diferencia escalas de produção. Também me interessava pesquisar Minas Gerais pela existência de um grande mercado informal de queijos de leite cru, que são na sua maioria produzidos em pequena escala por famílias que produzem abaixo de 50 quilos de queijo por dia. Ou seja, pode-se dizer que Minas tem uma “grande produção de queijo em pequena escala”, sendo o queijo importante na alimentação e na renda de milhares de famílias rurais e para a economia de dezenas de municípios. Os queijos feitos “nas roças” ou “nas fazendas” são parte da identidade cultural dos mineiros e o modo de fazer os queijos minas artesanais foi reconhecido pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico Nacional como um patrimônio cultural nacional.  

Assim, dentro do GT Slow Food Queijos Artesanais, sempre tivemos uma maior simpatia e aproximação com políticas como as do IPHAN-Instituto do Patrimônio Histórico Nacional, por considerá-las mais inclusivas e mais respeitosas com relação aos saberes e modos de vida das populações rurais.

Pessoalmente sempre tive ressalvas com as Indicações Geográficas, que me parecem por princípio excludentes, tendo um status equivalente a patentes, embora detidas por associações de produtores. Por exemplo, no Brasil elas estão sob a responsabilidade legal do INPI – Instituto Nacional da Proteção Industrial, responsável pelo registro de patentes. As Indicações Geográficas têm suas raízes em disputas por mercados, nas quais determinados setores de produção buscam lutar contra o que passa a ser chamado de “produto falsificado”. Servem para garantir uma exclusividade de mercado para determinados produtores e formas de produzir tendo em vista alcançar os chamados “mercados de nicho”, que têm maior expressão em populações de renda mais alta, em centros urbanos maiores. As Indicações Geográficas têm potencial para valorizar a produção de alguns (poucos) produtos que possam ser reconhecidos (através de selos de qualidade) por estas populações urbanas como únicos e exclusivos, permitindo alcançar preços diferenciados para aqueles (também poucos) produtores e comerciantes que conseguem ser incluídos.

E embora as IG(s) estejam sendo percebidas como um potencial  de reconhecimento e valorização (simbólica e econômica) de produtos artesanais, o que permitiria uma resistência à progressiva industrialização, homogeneização e artificialização dos alimentos, elas estão ancoradas em valores industriais (como indica sua vinculação ao INPI), que em vários aspectos entram em choque com os valores artesanais. Por exemplo, a obtenção do selo de IG exige a adequação às normas sanitárias, que seguem padrões internacionais com fortes tendências esterilizadoras, o que traz fortes consequências para a microbiodiversidade dos queijos, ou seja, para a riqueza de sua flora microbiológica. E embora as Indicações Geográficas possam abrir brechas legais para conquistar exceções às normas sanitárias gerais como, por exemplo, para tempos de cura menores que 60 dias ou para o uso de equipamentos e utensílios de madeira, a obtenção destas exceções exige grandes quantias de recursos para a “comprovação científica” da sua “segurança”, em geral inacessíveis aos produtores de pequena escala. Ou seja, não há, pelas IGs, um reconhecimento da tradição e dos saberes locais como forma de comprovação, embora tenham sido estes conhecimentos práticos que levaram os produtos a adquirirem fama e reconhecimento fora de seus locais de produção. Outro aspecto é que, embora as IGs tragam a possibilidade de valorizar a diversidade, elas embutem a mesma lógica padronizadora hegemônica na produção industrial: para ter o selo é preciso que os produtos sigam um determinado padrão, o que pressiona no sentido de diminuir a diversidade interna entre os produtores.

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Por que você decidiu pesquisar os queijos canastra e a legislação sanitária,?

Bibi:  Em vários encontros e reuniões sobre queijos artesanais brasileiros, a legislação sanitária aparecia como um dos problemas principais a serem enfrentados. E por este caminho o GT Queijos do Slow Food começou a participar, enquanto organização de consumidores, de negociações sobre as normas sanitárias. A demanda por legislações sanitárias diferenciadas para a agricultura familiar e para pequenas escalas se fortaleceu num contexto nacional em que a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional buscava implementar políticas que favorecessem compras diretas e locais de alimentos menos processados, como no caso do PNAE-Programa Nacional de Alimentação Escolar. Participando destas discussões, percebemos que as dificuldades para atender às exigências da legislação sanitária afetam não somente os produtores de queijos artesanais de leite cru, mas vários produtos e centenas de milhares de famílias rurais, perseguidos pela fiscalização sanitária sob a acusação de serem de “baixa qualidade”, num jogo de palavras que confunde “segurança alimentar” com “segurança sanitária dos alimentos”, esta última percebida como a presença de alguns grupos de micro-organismos que são mais facilmente observados em laboratório.

Há, por exemplo, uma enorme preocupação com a presença de “coliformes fecais”, cujos indicadores e níveis máximos permitidos são construídos de forma globalizada, tendo como referência produções de grande escala e mercados de longas distâncias. E tendem a ser minimizados os riscos de contaminação envolvidos no uso de insumos industriais, como agrotóxicos, rações transgênicas, hormônios artificiais, conservantes, embalagens plásticas, cujos danos e presença são mais difíceis de serem medidos em laboratório. Assim, da mesma forma que as indústrias de agrotóxicos defendem o uso de termos como “defensivos” ou “produtos fitosanitários” (tendo em vista ocultar a toxicidade e os riscos destes produtos), as preocupações industriais com a esterilização dos alimentos passam a ser chamadas de “segurança alimentar”, que no Brasil é um conceito muito mais amplo e tem na sua origem em preocupações com o combate à fome e à desigualdade social. Comecei a me dar conta que, com base em alguns indicadores microbiológicos e em fortes exigências de infra-estrutura, a legislação termina dificultando a geração de renda e a agregação de valor aos produtos agropecuários, perseguindo e estigmatizando como “inseguros” mercados regionais e produtos produzidos em pequena escala, favorecendo uma maior concentração dos mercados.

Assim, embora na sua origem a legislação sanitária tenha sido criada com o objetivo “proteger a saúde dos consumidores”, ela está se transformando num instrumento legal que termina favorecendo o modelo dominante de produção, distribuição e comercialização de alimentos em grandes escalas. Isso fica claro, por exemplo, quando a legislação persegue a comercialização formal de queijos artesanais e do próprio leite cru produzido localmente e vendido diretamente aos consumidores. Favorecendo, por exemplo, a oferta legal de leite UHT. Estas leis dificultam também a comercialização legal de ovos e porcos caipiras produzidos localmente em pequena escala nos quintais, favorecendo a produção cada vez mais concentrada em enormes granjas industriais. Por exemplo, na região da Canastra, onde o soro do leite (sub-produto da produção do queijo) é utilizado para a alimentação de porcos e galinhas, com sabor maravilhoso e praticamente sem insumos químicos, estes também têm dificuldade de serem vendidos legalmente, mesmo no comércio local. Pela lógica da legislação, os riscos de contaminação com salmonela ou coliformes fecais se tornam mais importantes do que os riscos envolvidos do modelo de criação animal em grandes escalas, que estão na origem de grandes surtos como o da gripe aviária, mas também da vaca louca e da gripe suína. Isso apenas falando em acontecimentos noticiados pela mídia internacional, sem contar riscos cotidianos e locais (à saúde e ao meio ambiente) envolvidos na poluição de águas, no uso exagerado de antibióticos, de rações transgênicas, de agrotóxicos, de hormônios industriais, de conservantes químicos, de embalagens sintéticas, de combustíveis fósseis, etc.

Percebe-se na formação dos técnicos especializados um foco em determinados riscos em detrimento de outros, num mundo em que há uma enorme complexificação dos riscos criados pelo próprio desenvolvimento técnico-científico. Neste contexto, a construção de legislações voltadas para a proteção da saúde dos consumidores sofre a interferência de enormes interesses econômicos, que influem na definição de que riscos devem ser levados mais em conta e quais seriam as soluções para evitá-los. Estes mesmos interesses econômicos estão na base da própria produção científica (e no financiamento de pesquisas) e, anteriormente a isso, na própria elaboração dos curriculuns das faculdades, que estão longe de serem neutros. Os próprios “riscos” são uma abstração e são construídos socialmente. E tanto cientistas quanto técnicos especializados não estão isentos de influências culturais (além das econômicas) quando definem as pesquisas e analisam seus resultados, ou quando fiscalizam a aplicação da legislação sanitária. E é a definição de riscos que está na base das definições de “qualidade” e “segurança” que embasam as legislações internacionais. E quando se analisa mais a fundo, descobre-se que há fortes controvérsias entre os próprios cientistas, que são bastante evidentes no que se refere às exigências de pasteurização do leite para elaboração dos queijos, embora esteja claro que a pasteurização (e agora a estrelização) é bastante importante por ter permitido a produção de laticínios em grandes plantas industriais.

Assim, eu resolvi centrar a pesquisa na regulação sanitária porque queria entender melhor como se estrutura, quais suas origens e evolução. E como e em que medida se legitima frente à sociedade. Porque apenas a repressão não sustenta as legislações, ou seja, elas precisam se legitimar de alguma maneira. Se uma lei vai muito contra os costumes de uma população ela “não pega”.  

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Como foi sua relação com os produtores locais durante a pesquisa? Você acha que o queijo canastra, por exemplo, está em extinção?

Bibi: Na pesquisa de campo eu busquei acessar famílias de produtores e atravessadores que permanecem na informalidade. Não é fácil chegar nelas, pois estão cada vez mais acuadas pela legislação e pela estigmatização que a visão industrial dominante promove, de que os queijos que produzem e comercializam são “inseguros” e/ou de “baixa qualidade” e de que os locais de produção são inadequados e não obedecem padrões mínimos de higiene. Assim, embora quase 15 anos após a promulgação da primeira lei, elas continuem sendo mais de 90% do total, estas famílias estão cada vez mais “escondidas”, sendo a invisibilidade uma forte proteção. Elas não querem ser visibilizadas, pelo risco de serem autuadas pela fiscalização. E mesmo com preços baixos e vendidos apenas nos locais onde a fiscalização no comércio não tem pernas para coibir (em geral em mercadinhos menores e em bairros mais periféricos das cidades) a produção destes queijos continua permitindo a sobrevivência de milhares de famílias que, por alguma razão, optam por fazer seu próprio queijo ao invés de entregar o leite à indústria de laticínios. Minha relação com estas famílias foi bastante boa, sempre fruto de muitos aprendizados, embora frequentemente enfrentando desconfianças.

Mas em parte a permanência desta produção artesanal está relacionada aos próprios processos de exclusão pela concentração industrial no setor de produtos lácteos, que vem exigindo (e impulsionando) escalas cada vez maiores de produção de leite, excluindo das linhas de leite produtores menores e mais distantes de estradas principais (que não interessam aos grandes laticínios) e tornando os queijos artesanais de leite cru uma opção de sobrevivência, com alguma autonomia. Por exemplo, a região da Canastra é bastante montanhosa, as famílias rurais vivem distantes umas das outras, as estradas são ruins e com trechos intransitáveis nas chuvas, a energia elétrica é recente e nem sempre estável. E as tecnologias tradicionais permitem tirar o leite, processar o queijo, armazená-lo e transportá-lo até o consumidor nas cidades, sem a necessidade de grandes investimentos, de equipamentos especiais, de energia elétrica ou de embalagens. O modo de produção tradicional permite produzir um bom queijo praticamente sem nenhum insumo comprado, além do sal e do coalho. Quando um pouco mais curados (como eram comercializados até a chegada dos automóveis e da energia elétrica) a casca é considerada a embalagem do queijo, ao ponto de exigências como resfriamento e acondicionamento em plásticos serem inicialmente percebidas pela população local como desfigurando e transformando o queijo. Atualmente, a maior parte dos queijos canastra é comercializada com poucos dias de maturação, enquanto estão ainda brancos, seguindo tendências que a própria industrialização e pasteurização vem criando, com a população urbana se desacostumando de sabores mais fortes, levando a um mercado mais restrito para queijos curados.

Os produtores que buscam seguir os critérios das Indicações Geográficas necessitam conquistar novos mercados, inicialmente em lojas especializadas em grandes centros urbanos, o que exige um trabalho de valorização e desenvolvimento do gosto por queijos mais curados, que o Slow Food também estimula, pois é na cura que os sabores se multiplicam e se complexificam.

Estes produtores têm lutado muito para serem respeitados pela fiscalização, enfrentando muitas dificuldades. Vêm por exemplo buscando novas opções de embalagem , que não o plástico, entre outras questões. Mas para se legalizar acabam precisando mudar, em vários aspectos, seu modo de produzir. Alguns produtores que conseguem espaço na mídia, através de concursos ou de ligações com chefs de cozinha, vêm conseguindo vender a preços mais altos, mas passam a se orientar por critérios ditados por este mercado da alta gastronomia, que busca queijos diferenciados e toma como parâmetro queijos de outros países.

Estão assim surgindo novos queijos, com diferentes tamanhos e tipos de casca, quase exclusivos de cada produtor, embora com algumas características e sabores básicos comuns, que permitem identificá-los como queijos da Canastra. Me parece que este é um mercado com potencial de expansão e de competir com queijos finos importados, o que é positivo, mas é um mercado muito aquém da produção existente na região. Calculo que ele insira atualmente menos de 5% dos produtores e talvez nem 2% da produção.  

Os demais 95%, vêm demonstrando também uma grande capacidade de adaptação, com inventividade e criatividade (de produtores e atravessadores) na incorporação, à sua maneira, de novos materiais e conhecimentos, mas seguindo lógicas próprias, que muitas vezes passam despercebidas por técnicos especializados, que consideram como um “atraso” tudo o que não segue as normas legais ditadas por modernas técnicas industrias, construídas em contextos urbanos e voltadas para escalas maiores. As soluções propostas pelos técnicos (e cristalizadas em normas legais) em geral aumentam os custos de produção e a necessidade de investimentos. E nem sempre são possíveis, adaptadas ou eficientes para as condições sociais, ambientais, culturais e econômicas das famílias rurais e das cidades de menor porte. As restrições à comercialização (pelo fato não serem legalizados) e a sua estigmatização pela visão industrial dominante como sendo “inferiores”, “perigosos”, “sem padronização” de “baixa qualidade”, “inseguros”, etc, somadas à concorrência com queijos industrializados, leva a um achatamento dos preços. E os baixos preços desestimulam a produção de queijos mais “caprichados”. Mas mesmo os queijos que nesta região são considerados “ruins” ainda são melhores ou equivalentes a boa parte dos queijos industriais (legalizados) de pior qualidade vendidos a preços baixos nos supermercados. Uma das coisas que faz a melhor qualidade gastronômica destes queijos, além de serem feitos com leite cru (o que lhes confere sabor e textura especiais) é o fato de serem elaborados em pequena escala e com leite recém-ordenhado.

Me parece que o que dá a esta produção uma maior capacidade de resistência é o fato dos queijos não serem apenas voltados para fora da região: eles fazem parte da alimentação cotidiana das populações destes pequenos municípios produtores, sendo comidos puros, com café, misturados na comida, além de utilizados em diversas receitas tradicionais, como nas quitandas mineiras (pão de queijo, biscoitos, bolos). Há critérios locais de qualidade, que são construídos ao longo do tempo na relação permanente entre famílias produtoras (que são também consumidoras) e a população, que sabe reconhecer os bons queijos, independente de selos, rótulos ou embalagens. E os queijos considerados “bons” têm mercado local, cativo e fiel. Assim, me parece que o que dá uma enorme força à continuidade desta produção (que poderia ser chamada mais “tradicional”, embora isso não queira dizer que ela não passe por mudanças) é seu forte enraizamento cultural nas regiões produtoras, ou seja, é nesta legitimidade que eles têm nos  mercados locais que está boa parte da força de sua resistência aos processos de ilegalização.

Assim, a produção e comercialização dos queijos pela grande maioria das famílias tem sua permanência condicionada às possibilidades de sobrevivência de maneira ‘informal’ ou ‘clandestina’, através de múltiplas estratégias, que incluem um achatamento dos preços (favorecido pela situação de ilegalidade), mas estas estratégias se ancoram fortemente em tradições culturais, laços de proximidade e de confiança, assim como na não especialização das atividades econômicas e na manutenção de custos mais baixos de produção.

 

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Qual a sua descoberta mais importante durante a pesquisa?

Bibi: A pesquisa me trouxe várias descobertas e aprendizados. Do ponto de vista pessoal, me apaixonei pela região e me surpreendeu sua enorme riqueza cultural, que vai muito além dos queijos.

Uma das minhas supresas, ao investigar as origens da lei estadual mineira voltada para os queijos artesanais, foi descobrir que a referência às denominações de origem francesas já se dava desde os anos 1990 e iria influenciar na lei sanitária estadual e na própria definição legal do “Queijo Minas Artesanal”. Eu queria entender por que, sendo Minas Gerais “um grande queijo”, com queijos diferentes em cada região, a lei estadual 14.185, de  2002, incluiu inicialmente apenas quatro regiões produtoras (Serro, Canastra, Alto Paranaíba/Cerrado e Araxá) e apenas um modo de fazer, que seria em 2008 reconhecido pelo Iphan como patrimônio cultural do Brasil. Acredito que esta definição se inspirou no modelo francês, por serem queijos de montanha, com características exclusivas e perímetros delineáveis, com maior possibilidade de venda fora das regiões produtoras e com maior potencial para serem curados, o que entra menos em conflito com as exigências sanitárias. A experiência francesa é um contraponto às exigências internacionais de pasteurização do leite e deu força aos mineiros para defender seus queijos e enfrentar a legislação federal. O que não é fácil, pois nossa lei federal (o RIISPOA) tem como referência a legislação dos Estados Unidos, que por sua vez têm forte influência em legislações sanitárias internacionais, como o Codex Alimentarius, que define por exemplo os indicadores de “qualidade microbiológica”, que terminam sendo impostos aos países através de palavras que soam bonitas como a necessidade de “harmonização” das legislações, mas na verdade sem essa internalização os países podem sofrer sanções na exportação de produtos de origem animal de uma maneira geral. Mas mesmo a lei mineira para os queijos artesanais tendo sido um marco importante a nível nacional, ela não conseguiu escapar dos padrões industriais. Por exemplo, as exigências de níveis microbiológicos nela contidas excluem a grande maioria dos produtores, em especial pela presença de níveis de coliformes fecais e de estafilococos aureos acima dos permitidos. A própria França não consegue escapar das pressões industriais, inclusive por ser grande exportadora de queijos e precisar se submeter às regras internacionais, que são fortemente pró-pasteurização.

Eu aponto o laboratório e os exames microbiológicos como um dos principais instrumentos utilizados para o que eu chamo de “processos de ilegalização”, mas há também uma grande ênfase das legislações sanitárias em aspectos relacionados à infra-estrutura (construções, utensílios e equipamentos), muitas vezes inviáveis para as condições das famílias rurais. Diversas exigências terminam induzindo mudanças no “modo de fazer”, que vai além da receita do queijo, pois envolve também o que eu chamo de “forma de se manter na atividade” e que se relaciona com outras atividades, cultivos e criações. Nas exigências de infra-estrutura há fortes incongruências entre as percepções das populações locais e a dos técnicos especializados. A legislação e a formação dos técnicos especializados constróem uma percepção de que um “queijo de qualidade” (com um conceito de “qualidade” que se restringe à presença de níveis máximos de poucos grupos de micro-organismos considerados indesejados) depende de se ter queijarias com determinadas características, bastante associadas à indústria: cor branca, azulejos, materiais “não porosos e facilmente higienizáveis” (o que exclui a madeira, por exemplo), com determinadas disposições internas. E que para elaborá-los é preciso usar luvas, toucas, máscaras e aventais brancos, num padrão que se aproxima dos laboratórios e dos centros cirúrgicos, mas que é também o padrão das grandes indústrias alimentícias. Mas é comum na região da Canastra a gente ouvir as pessoas dizerem que “é possível produzir um bom queijo até debaixo de uma árvore” e que não é a “casa de queijo” (queijaria) que faz a qualidade do queijo, mas sim o capricho e cuidado na sua produção. Uma das coisas que eu busco descrever na tese é como a legislação sanitária traz embutida toda uma lógica (e mesmo uma estética) urbana e industrial, bastante dominante e que não reconhece as especificidades dos queijos de leite cru, das zonas rurais e da produção em pequena escala. E que não reconhece que há um conjunto de saberes associados à produção e comercialização do queijos minas artesanais que parte de outros princípios e lógicas.

Assim, mesmo a lei específica para os queijos artesanais embute a indução a uma lógica industrial de produção. A lei indica uma forma possível de produção, como comprova o fato de que alguns produtores (com melhores condições e interesse em vender para supermercados ou para mercados de nicho) conseguem se enquadrar nela. Mas são obrigados a mudar sua forma de produzir e a aumentar escalas de produção, a menos em casos bastante excepcionais de produtores que conseguem algum espaço na mídia ou ligações com alta gastronomia e conseguem se enquadrar como “queijos de grife”, conseguindo valores excepcionais para os queijos, algo improvável para a grande maioria dos produtores, que já estão inseridos em mercados que poderiam ser chamados de “populares”, de queijos que são consumidos no dia a dia. Estes produtores, com tecnologias, instalações e equipamentos bastante simples, produzem queijos de qualidade gastronômica superior aos industriais, com baixos custos e alguma independência tanto da indústria de insumos quanto das formas dominantes de distribuição e comercialização. São mercados bastante democráticos, no sentido de que são acessíveis a produtores e comerciantes de menor escala e com menos condições de investimentos. E, ao que tudo indica, são produtos bastante seguros, apesar de não se enquadrarem nos padrões microbiológicos definidos na legislação.  

Descobri que o poderoso discurso internacional pró-pasteurização dos queijos está provavelmente relacionado não diretamente por interesses das indústrias de laticínios nos mercados de queijos propriamente ditos, mas por disputas em torno dos mercados de leite fluido. Os queijos artesanais são incluídos, pelos setores vinculados ao agronegócio do leite, na conta do “leite clandestino”, ou seja, do leite que chega aos mercados sem passar pelas indústrias. Há no mundo ainda um conjunto grande de países onde a pasteurização do leite não se impôs e nos quais os mercados ainda são bastante descentralizados, com vendas diretas dos produtores aos consumidores, como aponta por exemplo o artigo da ONG Grain “La leche em manos de la gente” . Este artigo mostra que os países onde a pasteurização do leite se tornou mandatória tiveram uma enorme concentração do  mercado na mão das grandes multinacionais, processo que se acentuou com a entrada do leite UHT, processo que levou ao desmonte de todo um conjunto de pequenas cooperativas que eram as principais responsáveis pelo abastecimento de leite fluido.

Talvez uma das minhas maiores surpresa foi descobrir a enorme força da articulação entre ciência e legislação na regulação sanitária, muito maior e mais complexa do que eu poderia supor inicialmente. A intervenção governamental conjuga saberes administrativos e saberes científicos, criando um complexo emaranhado legal e institucional, que entrelaça normas e regulamentos em vários níveis (do internacional ao local) que buscam governar a atividade econômica, a vida social e a conduta de pessoas (e de microrganismos). Os laboratórios são chave para este governo e os altos custos que envolvem colocam transformam barreiras econômicas em barreiras políticas, no acesso às próprias decisões sobre as leis, dado que o poder de definir as normas legais (que exigem comprovação científica) se restringe a quem tem poder econômico para custear pesquisas onerosas.

Num contexto em que as pessoas se preocupam cada vez mais com os riscos envolvidos nos alimentos, paralelamente à concentração industrial e de poder econômico há uma concentração do poder político, de decisão sobre as normas legais, excluindo atores sociais e formas de conhecimento, concentrando nas mãos de determinados especialistas decisões que interferem na vida, não apenas de pessoas, mas também de um conjunto de seres vivos. A construção legal do laboratório como única forma de diagnóstico válida limita a regulação aos riscos à saúde aos indicadores que podem ser monitorados a partir destes instrumentos, embora sejam claramente insuficientes para enfrentar a complexidade dos riscos contemporâneos, boa parte deles causados pelo próprio uso de tecnologias industriais e aumentos de escala. A ciência é considerada a única forma de conhecimento legítimo (omitindo controvérsias entre os próprios cientistas) e é dada a autoridade exclusiva a profissionais especializados (no caso dos queijos, os veterinários), desconsiderando outras percepções e formas de monitoramento de riscos, construídas a partir de diferentes valores e formas de conhecimento, ancoradas nas especificidades locais.

As disputas em torno da legalização dos queijos minas artesanais apontaram uma espécie de ‘efeito circular’ entre normas técnicas e ciência, com conhecimentos científicos colocados como ‘verdades’ e se consolidando em normas e regulamentos jurídico-legais, que por sua vez reforçam seu caráter de verdade e definem os parâmetros e pontos de partida para novas pesquisas científicas, reforçando caixas-pretas que foram fechadas não apenas como resultado de disputas internas na ciência, mas também como resultados de disputas políticas, econômicas, sociais e culturais na base da construção de normas técnicas legais.

Eu tomo como exemplo os exames microbiológicos de qualidade dos queijos, que os classificam legalmente como “impróprios ao consumo humano” com base na análise de níveis de quatro grupos de microrganismos, definidos a partir de “Regulamentos Técnicos de Identidade e Qualidade dos Queijos”, estabelecidos globalmente sob influência da Federação Internacional de Lácteos (que congrega gigantes como a Nestlé, Danone, Lactalis) e tomados como referência pelo Codex Alimentarius, regulando o comércio internacional. No Brasil, estes regulamentos foram internalizados nos anos 1990, no âmbito das negociações do Mercosul, cristalizando-se em normas sanitárias que orientam o “Programa Nacional de Qualidade do Leite” e que servem de referência para a Portaria n° 146/1996 do MAPA e na RDC 12/2001 da Anvisa, que por sua vez influenciam na lei estadual mineira para o queijo artesanal (lei no 14.185/2002).

Esses níveis microbiológicos levam à condenação da quase totalidade dos queijos artesanais, resultando na total incongruência entre as realidades de “insegurança” construídas pela avaliação técnico-científica dos riscos e as avaliações ditas “leigas” com relação aos riscos envolvidos no consumo dos queijos de leite cru.

E esses mesmos níveis microbiológicos servem como parâmetros para pesquisas tendo em vista definir o “tempo mínimo seguro” de cura dos queijos minas artesanais, definidos em termos de número de dias, embora todo o conhecimento prático da população que produz, comercializa e consome estes queijos aponte que o número de dias não é a melhor medida para avaliação do tempo de cura, pela grande diversidade de condições ambientais em que ele é elaborado. E não busca pesquisar, por exemplo, por que, apesar de produzidos em condições higiênicas consideradas “insatisfatórias” e de indicadores microbiológicos que os classificam como “impróprios ao consumo humano”, são consumidos em grandes quantidades e não se constituem em problema efetivo de saúde pública, sendo considerados saborosos e seguros pela população local das regiões que produzem e consomem cotidianamente estes produtos. Como expressa uma liderança de produtores da Canastra no filme “O mineiro e o queijo”:  “do jeito que mineiro come estes queijos, se eles fizessem mal a gente teria uma epidemia de queijo”. O argumento dos técnicos especializados, de que as pessoas comem os queijos e passam mal sem saber a causa, além de insuficiente, me parece desrespeitoso com as tradições culturais da população.

Aponto que embora apresentada como embasada em parâmetros científicos e neutros, voltados para proteção da saúde dos consumidores, a regulação sanitária é resultado de disputas sociais, onde estão presentes diferentes visões de mundo, jogos de mercado (não só de produtos, mas também mercados de trabalho) e interesses econômicos e, no caso analisado, tende a acentuar desigualdades e processos de exclusão social e econômica.  São chave, para a consolidação destes processos, profissões especializadas responsáveis ao mesmo tempo por fazer as normas (do ponto de vista jurídico) e por garantir seu cumprimento (através de trabalhos em laboratórios, fiscalizações, realização de consultorias, cursos e capacitações aos produtores, etc.). São construídas concepções de qualidade e percepções de segurança e de risco que tornam ilegais práticas costumeiras de produção, processamento e consumo de alimentos produzidos localmente em pequenas escalas, afetando um universo social amplo e heterogêneo cuja reprodução se dá por mecanismos informais e baseada em diferentes valores.

As diferentes percepções dos riscos no caso dos queijos minas artesanais apontam no mesmo sentido de outros estudos sociológicos e antropológicos que questionam um pretenso caráter estritamente científico das definições de riscos e apontam a pluralidade de racionalidades na forma de lidar com os riscos. As controvérsias em torno dos queijos de leite cru revelam as divergências entre os próprios especialistas. A atenção que as pessoas (incluindo técnicos especializados) dão a determinados riscos em lugar de outros são parte de um processo sociocultural: valores comuns levam a medos comuns, assim como a um acordo implícito sobre o que não temer. Assim, os riscos não se encontram dissociados dos sistema de valores e crenças, assim como das posição sociais e pessoais, valores estes que variam no tempo e estão organizados em sistemas complexos adquiridos pela socialização, o que inclui a socialização nas diferentes faculdades e especializações. Cada cultura estabelece determinados ‘riscos assumíveis’ (porque podem comportar benefícios) e ‘riscos ruins’ (que devem ser evitados). Valores associados a determinados riscos frequentemente representam julgamentos morais implícitos, ainda que mascarados pelo discurso do objetivo e dos dados quantitativos.

Dessa forma, regulação sanitária não é uma questão meramente técnica e científica e não se refere unicamente à defesa da saúde, mas é resultado histórico de um conjunto de disputas e relações de poder (econômico, político, cultural, simbólico, etc.),com forte influência de valores e interesses urbanos e industriais hegemônicos. No caso dos queijos artesanais, a legislação sanitária tem servido como uma pressão a mais na imposição de um modelo industrial de produção, com um custo energético e ambiental maior e que demanda maiores investimentos e custos monetários e maior dependência de insumos externos, num contexto em que as famílias produtoras têm pouco poder de barganha. E, do ponto de vista gastronômico, leva a uma perda de biodiversidade microbiológica e a uma diminuição na diversidade e na complexidade de sabores dos queijos.

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E sua maior frustração?

Bibi: Não tive propriamente frustrações, pois sei que qualquer pesquisa é muito limitada e vai apontar apenas um pequeno aspecto de realidades que são sempre muito complexas. E também tenho claro que pesquisas não trazem sozinhas soluções para os grandes desafios e problemas enfrentados. Mas a pesquisa me trouxe algumas preocupações, no que se refere às lutas em defesa da produção artesanal de queijos.

Uma delas foi a percepção das dificuldades e dos limites de caminhos que buscam a legalização a qualquer custo. Passei a desacreditar das possibilidade de negociação de normas sanitárias mais adequadas à realidade da produção artesanal que tenham que partir dos emaranhados legais existentes. Passei a desacreditar também nas possibilidades desta legislação de proteger de fato a saúde dos consumidores, dado que é preciso enfrentar interesses econômicos muito poderosos. É preciso um trabalho muito grande de disputa, na sociedade, para ter forças para propor legislações com outras lógicas, que desmistifiquem a própria Ciência enquanto forma única e legítima de conhecimento.

Apesar dos grandes esforços feitos em Minas Gerais, a inadequação da legislação mineira à realidade das famílias produtoras se reflete no fato de que, mais de dez anos após a promulgação da lei estadual de 2002 para os queijos artesanais, um percentual ínfimo de famílias pode ser considerada como de fato atendendo à legislação, não havendo indícios de que este número tenda a aumentar significativamente. A perspectiva das IGs e a busca de ‘mercados de nicho’ permite achar saídas legais e conseguir adeptos entre técnicos, pesquisadores e produtores, mas não questiona a lógica industrial dominante.

Uma das questões bastante preocupantes é o fato de que os produtores que se “legalizam” e buscam se adequar às normas legais, passam a perceber os “não legalizados” como concorrentes, não apenas pelo fato de não pagarem impostos fiscais, mas por terem menores custos e serem capazes de disponibilizar no mercado queijos equivalentes ou até superiores, gastronomicamente falando.

Com isso, a “legalização” de alguns (poucos) produtores tem acirrado disputas locais, reforçando no plano local a estigmatização das formas tradicionais de produção e sua “ilegalização”, podendo resultar em denúncias e no aumento da capacidade de fiscalização e de repressão aos “não legalizados”. Isso ao meu ver acaba trazendo uma ameaça cultural, reforçando localmente a lógica urbana industrial e os padrões (inclusive estéticos) dominantes.

Também percebi que não necessariamente a “visibilização” desta produção artesanal é positiva, pois na sua “invisibilidade” e no seu ancoramento em mercados informais está em grande parte sua capacidade de resistência.

Mesmo movimentos de defesa das culturas alimentares, que buscam valorizar a diversidade agroalimentar e as especificidades locais, na medida em que têm como pressuposto a sua legalização, podem contribuir para estigmatizar ainda mais conhecimentos, percepções e práticas populares e camponesas, funcionando como um elemento a mais de desestabilização dos mercados informais, que são os que vêm garantindo a reprodução da grande maioria das famílias produtoras.

Não me refiro à França na tese porque não foi objetivo específico de pesquisa e não pude aprofundar mais, mas no pouco que conheci sobre a realidade francesa, senti que mesmo lá a produção de queijos artesanais de leite cru passou por fortes processos de exclusão e de concentração e tem dificuldade para enfrentar as crescentes pressões da legislação internacional. Lá os queijos ditos “artesanais” vêm se aproximando cada vez mais dos industriais, ao ponto de algumas denominações de origem já aceitarem as duas versões dos queijos: pasteurizado e de leite cru. As exigências esterilizadoras são tão grandes que mesmo os produtores de queijos de leite cru têm precisado comprar fermentos industriais. E a legislação dificulta cada vez mais a produção de fermentos fora de laboratórios, impondo a compra de fermentos industriais. Minha impressão foi de que há uma perda incalculável de micro-biodiversidade, pois de centenas de espécies de micro-organismos que existem naturalmente nos queijos são selecionados em laboratório quatro ou cinco espécies consideradas como dando mais “tipicidade” aos queijos e perde-se a diversidade e a complexidade de sabores. Mas como isso vem se dando aos poucos e progressivamente, com exigências esterilizadoras cada vez maiores, perde-se também a memória dos sabores. Neste sentido, me pareceu que os queijos de leite cru estão até mais ameaçados na França do que no Brasil, onde, pela dificuldade de fiscalização e pela maior informalidade na produção, há uma maior persistência de formas não industriais de produção e de outras lógicas e formas de conhecimento, de produção e de relação com os mercados, importantes para a sobrevivência de dezenas de milhares de famílias, de uma maior riqueza microbiológica, de tradições e culturas alimentares diversificadas.

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3 Comments

Anajá Arantes
24/04/2017 at 14:51

Ótimo texto. Contribuições importantíssimas da Bibi Cintrão sobre esse tema. Me senti contempladíssima pelas reflexões da autora.

Yuri Barreiros
25/04/2017 at 08:40

Maravilhoso trabalho!!! Uma luz pra vermos mais claramente os desafios das produções artesanais.??????✊?✊?✊?

Onivaldo Ramos Leão
15/05/2017 at 18:57

Belíssimo libelo crime acusatório. Que o espírito dos inconfidentes dê aos mineiros a força e organização necessárias para romper este círculo vicioso, criminoso, acobertada por “verdades” científicas.

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