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Regras sanitárias constrangem produtores de queijo que querem usar o nome “Canastra”

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Desde que o queijo mineiro, artesanal e de leite cru, tem sido mais valorizado,
produtores têm inovado no modo de fazer e curar,
para diferenciar o produto e conquistar novos mercados.

Como encontrar o equilíbrio entre a inovação e preservar a tradição?

Por Débora Pereira. Publicado em 30 de março de 2015

Desde 2012, o queijo da serra da Canastra tem Indicação Geográfica – IG, ou seja, um registro que indica a procedência e lhe atribui reputação, valor intrínseco e identidade própria, além de o distinguir em relação aos similares disponíveis no mercado.

Para ter direito a adotar o nome da região, o queijo deve ser fabricado nos sete municípios demarcados como Canastra: São Roque de Minas, Bambuí, Delfinópolis, Vargem Bonita, Medeiros, Tapiraí e Piumhi. Outro requisito para usar o nome comercialmente é a queijaria se inscrever para ter a aprovação do Instituto Mineiro de Agropecuária – IMA, de Minas Gerais.

Júlia Cunha é mais uma entre as centenas de famílias produtoras de queijo na serra da Canastra que estão dentro do território demarcado, mas não possui ainda a certificação do IMA. Sua propriedade, localizada na Serrinha, tem vista para duas cachoeiras e fica bem em frente ao paredão do povoado das Buracas. Seu modo de fazer o queijo tem tudo para alcançar um produto excelente: asseio, capricho, leite de qualidade e boas práticas de fabricação. O quarto de fabricação não tem paredes azulejadas, vasilhame inoxidável, água clorada e ela não usa luvas.

Felizmente, esse modo de fazer garante o sabor único e delicioso do seu queijo. Depois de curado, ele possui gosto picante e uma massa com pequenos cristais de tirosina, um aminoácido que dá sabor especial. Isso na Europa também ocorre em queijos como o suíço Etivaz e é sinal de boa qualidade.

Uma das ‘boas práticas’ de Júlia, que não é bem vista pelos órgãos de fiscalização sanitária, é que ela  quebra a massa coalhada com a mão, sem luvas. De acordo com as normas, a massa deve ser cortada por pá de plástico ou inox. Ela explica que quebra com a mão para ter uma massa mais homogênea:

“Eu prefiro quebrar com a minha mão mesmo porque aí ela fica quebradinha tudo igual, porque a pá já não fica igual, fica com uns pedaços maiores que os outros. Se eu quebrar ela só um pouco, deixando pedaços grandes, ela vai ficar muito mole.” Júlia Cunha

O video abaixo mostra a fabricação do queijo Etivaz, orgulho nacional na Suíça. O produtor, de dorso nu, manipula a massa com as mãos. O chiqueiro dos porcos fica ao lado da construção, para receber o soro do leite. A sala de fabricação não tem paredes de azulejos e a água pura da montanha não é clorada. A receita demanda ainda o aquecimento da massa até 32ºC, temperatura que permite que o queijo seja considerado de leite cru. Enquanto aquece, o produtor experimenta a textura da massa com a mão. Antes de tirar o leite, os mamilos das vacas são limpos apenas com um tecido, para retirar a poeira, mas não com produtos sanitários, pois isso mataria as bactérias tão caras para a fabricação desse queijo.

A Suíça é famosa na Europa por seu rigor sanitário. É preciso que nossas autoridades sanitárias assistam o que acontece na Europa para compreenderem que alterar o modo de fabricação dos queijos tradicionais vai alterar também o sabor. Excesso de cloro e paredes azulejadas podem eliminar coliformes fecais, mas junto com eles, perde-se a riqueza da flora bacteriana única da Serra da Canastra. Com baixo teor das bactérias probióticas, que por si matam as bactérias nocivas, o queijo “zanga”, jargão utilizado para quando o produto se enche de furinhos e não serve para curar.

E se o leite cru não tem bactérias probióticas suficientes, é preciso acrescentar essas bactérias ao leite. No caso do queijo francês camembert, por exemplo, é comum acrescentar o Geotrichum candidum, que dá uma casca branca aveludada no queijo. Existem grandes indústrias agro-alimentícias privadas especializadas em venda de bactérias na Europa. No caso do camembert, é vendido somente um tipo de Geotrichum, Geotrichum candidum, o  que, de certa forma, levou à extinção diversos outros tipos da mesma bactéria na fabricação desse queijo. 

A microbiodiversidade na Europa, com essas ações de padronização industrial das bactérias, reduziu muito sua variedade. No Brasil, as bactérias do terroir da Canastra são ‘caipiras’. Já foram identificadas em laboratório a Weissella paramesenteroides e a Lactobacillus plantarum, entre várias outras, mas elas não têm produção industrial. O cultivo ocorre de forma tradicional, por isso o cultivar o pingo (caldo de fermentos do queijo) pelas famílias produtoras é uma arte.

Jean-Charles Arnaud, presidente do Institut National de l’Origine et de la Qualité – INAO da França, chamou atenção (em entrevista exclusiva para a SerTãoBras) para o fato das pessoas hoje em dia se preocuparem muito mais com a salvação dos ursos pandas e das baleias e não atentarem para o risco de perdemos o potencial de diversidade das bactérias lácticas (veja vídeo).

Júlia Cunha se inscreveu na Aprocan e no projeto “Região do Queijo da Canastra”(veja reportagem) para poder vender melhor seu queijo. Porém, se ela seguir o caderno de regras para utilizar o selo da marca, vai ser constrangida a abandonar suas boas práticas de fabricação e adotar o modelo sanitário imposto pelo IMA. O que poderá alterar o sabor do seu queijo.

Regras sanitárias devem ser construídas de forma coletiva

Institut National de l’Origine et de la Qualité – INAO, da França é a instituição responsável por certificar denominações de origem protegida. Jean-Charles Arnaud, o presidente, afirma no vídeo abaixo que a resistência dos produtores de queijo em seguir as regras sanitárias se dá porque essas regras são impostas de cima para baixo.

No caso da França, quando um queijo é certificado como um produto de denominação de origem controlada, seu caderno de boas práticas é escrito de maneira participativa entre produtores e autoridades. Um processo lento. Um dos queijos que está sendo reconhecido como denominação de origem protegida na Europa em 2015, o soumaintrain, levou 20 anos.

Esse processo garante que o produtor aceite a denominação de origem, incluindo as regras que acompanham seu modo de fazer, como instrumento protetor da sua tradição.

“É preciso chegar a esse momento, sempre essencial,
quando o constrangimento do caderno de regras se torna
um potencial de valorização do alimento, vivendo na sua terra com orgulho,
o orgulho é um ingrediente muito importante.” Jean-Charles Arnaud

Denominação de origem pode inibir inovação

Certa vez, visitando a região francesa da Bourgogne, perguntei para um produtor de queijo Epoisses o que diferenciava o seu queijo do produto do vizinho, que tem a mesma denominação de origem controlada. “- Não tem diferença”, ele respondeu. “Se por acaso um empregado começa a fazer algum gesto diferente na lavagem do queijo, que possa resultar em alterações no produto final, rapidamente nós identificamos o erro e corrigimos”, continuou. “Para que tenhamos a AOP (Appelattion d’Origine Protegée, ou Denominação de Origem Controlada – DOC, em português) nós temos que concordar em fazer tudo igual, o produto não pode ser diferente”, disse o fabricante. A DO do queijo Epoisses conta apenas quatro produtores, sendo que somente um fabrica com leite da sua própria fazenda, os outros três coletam leite na região demarcada. Assista ao vídeo da fabricação:

Clique nos parâmetro do video no Youtube para assistir com legenda em português.

Os produtores da Serra da Canastra querem distinguir de alguma forma seu produto. Júlia Cunha, por exemplo, começou há seis meses a separar algumas peças para curar por mais tempo e vender por preço melhor, em vez de entregar toda produção semanalmente para o queijeiro. Ela lava o queijo a cada três dias no soro para ter um sabor mais picante e uma casca mais rosada.

Essas práticas, para diferenciar o produto e ganhar novos mercados, têm sido uma tendência. O produtor Luciano Machado não lava os queijos em maturação para que fungos brancos possam florescer.

luciano

Os queijos de Helena e Luciano são vendidos para a empresária Heloisa Bacellar, em São Paulo e são o segredo do sabor do famoso pão de queijo.

guilherme

Queijo que Guilherme está curando há um ano, como experiência.

Já Guilherme Ferreira, veterinário e empreendedor rural em São Roque de Minas, deixou algumas peças curarem embaixo da umidade do ar-condicionado, que resultou em um queijo com casca disforme que ele batizou de ‘canastra monstro’. O dono de uma loja em São Paulo onde ele entregou alguns exemplares não achou bonito o resultado e pediu para ele substituir as peças.

Com uma rede de amigos amantes da gastronomia, Guilherme resolveu anunciar o ‘canastra monstro’ no Instagram, com 90 dias de maturação, e vendeu tudo por R$60 a peça.

É notória a diversidade de sabores do queijos da serra da Canastra que encontramos na reportagem sobre butiques especializadas em queijo em Belo Horizonte e São Paulo.

Isso provoca um debate inevitável. Um queijo canastra mais picante, outro mais curtido, outro mais suave. Um amarelo, outro rosado, outro branquinho. Tanta diversidade de sabores vai contra o princípio da padronização dos produtos, determinado pelas políticas públicas de denominação de origem controlada e indicação geográfica.

Diferença entre Indicação de Procedência e Denominação de Origem

Segundo a definição legal do artigo 177 do Código de Propriedade Intelectual, CPI:

“considera-se indicação de procedência o nome geográfico de país, cidade, região ou localidade de seu território, que se tenha tornado conhecido como centro de extração, produção ou fabricação de determinado produto ou de prestação de determinado serviço”.

Por sua vez, a denominação de origem, de acordo com o artigo 178 do CPI é

“o nome geográfico de país, cidade, região ou localidade de seu território, que designe produto ou serviço cujas qualidades ou características se devam exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico, incluídos fatores naturais e humanos”.

A Indicação de Procedência se relaciona com o nome geográfico do lugar, conhecido por ter um determinado produto, já patrimônio cultural, famoso por ser deste local. Já a Denominação de Origem vai além: quando é reconhecida passa a ser o “nome” deste produto, onde todos os detalhes como qualidade, estilo e sabor se relacionam à terra, às pessoas e à história da região.

Na transição da primeira para a segunda, as normas e controles ficam muito mais específicos. A principal diferença entre essas modalidades de certificação reside no tipo de relação existente entre a qualidade ou as características do produto protegido e a região de origem.

Para o queijo canastra, se um dossiê para estabelecer a denominação de origem for instituído, poderá ser especificado desde o tipo de pasto e raça do gado até a padronização de uma receita de fabricação. Esse processo, para chegar a um senso comum, deve ser lento e contar com a participação de todos os produtores. Não é por acaso que na França, um país com mais de mil produtos lácteos diferentes, somente 45 queijos, três manteigas e dois cremes de leite têm denominação de origem protegida.

Tendências para o futuro do queijo

O queijo é um produto vivo e sua fabricação leva, além do leite e das bactérias únicas da região, um ingrediente muito importante que é a criatividade dos homens. E sua boa vontade em querer aperfeiçoar o produto para vender melhor. No meio do caminho entre preservar a tradição e inovar em técnicas para tornar o produto mais atraente está a saída para o que pode ser o futuro do queijo brasileiro.

“Penso que a chave é discutirmos “tradição” como riqueza cultural e não como conservadorismo ou conservação”, ponderou o professor de História da UFMG José Newton Meneses, ao ser questionado sobre a controvérsia entre tradição e inovação. Ele é autor do dossiê do IPHAN que declara o queijo como patrimônio imaterial da cultura.

“Temos que ver a tradição como uma dinâmica das vivências,
como resposta do homem ao seu cotidiano e como savoir-faire
que instrumentaliza o dia-a-dia desse homem, construindo saídas,
novas perspectivas, novas técnicas, novos instrumentos.”
José Newton Meneses

Para ele, o canal pode ser pensar menos a origem e mais o devir dessa tradição de fazer queijos artesanais.

Com o tempo, o reconhecimento oficial dessa diversidade pode assumir que ‘Canastra’ é um conceito guarda-chuva, ou seja, que abrange uma enormidade de produtos diferentes. Como afirma Laura Cota, comerciante da De Lá em Belo Horizonte: “esses queijos têm algo que diz que eles são Canastra [a indicação geográfica], mas são muito peculiares, cada um com seu sabor”.

“É legal essa diversidade de ver que dentro de uma região existem
produtos realmente distintos”. Laura Cota

Saiba mais

Regulamento de Uso da marca CANASTRA para queijo artesanal

Leia mais sobre as contradições da IG na resenha da tese de Jaqueline Sgarbi Santos

Leia artigo científico sobre diversidade das bactérias encontradas no queijo da Serra da Canastra: Queijo de minas artesanal da Serra da Canastra: influência da altitude das queijarias nas populações de bactérias acidolácticas

mapa

Contato dos produtores brasileiros citados:

  • Guilherme Ferreira – 19-99213-8658 (São Roque de Minas)
  • Júlia Cunha – 37-3353-8019 (São Roque de Minas)
  • Luciano Carvalho – 37-8831-6319 (Medeiros) 

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3 Comentários

Maria Lucia
04/05/2015 a 21:54

Gostaria de experimentar queijo meia cura da serra da canastra mas pra mim esta compricado na minha região ninguem vende moro em Bragança Paulista SP (minha preferencia queijo com pouco sal ) os que temos aqui tem muito sal , o sal aparece mais do o sabor do queijo . sem mais

Elizabeth
22/09/2017 a 13:52

Eu faço queijos e quem experimenta gosta muito vendo bastante até pra fora de Minas vendo muito o verde quero aprender a maturação certa tem como vcs me indicarem meu email é [email protected]

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